Querida Zeferina,
Uma vez briguei, indignada, com o
Zézinho, porque ele havia dito ser a luta feminista uma luta burguesa. Na
época, oitenta, era um campo de atuação política chamado de “luta das mulheres”,
creio que para diluir as possibilidades que o “ista” acoplado a “femin” erguia.
Era quase ilegal uma jovem mulher identificar-se como “feminista”, naquele
tempo onde as que se identificavam assim, em Porto Alegre, cabiam em duas ou
três Kombis (a Van da época). Seriam, caso fossem mais do que uma brincadeira
entre nós, Kombis lotadas de sonhos imprecisos e desconhecimentos sobre os
caminhos possíveis. Nem lembro como foi a briga, sei apenas que ele dava
risinhos em caretas-espelhos olhando para mim, caretas tensas, rígidas,
rápidas, cortantes, a revelarem uma mulher sem conteúdo que merecesse pleno
respeito, posta a sua frente, furiosa. Eu. Ele era um líder, o José Carlos de Oliveira,
na época parecia ter lido todos os livros interessantes do mundo e havia se construído
como dono de uma livraria chamada “Combate Socialista”. Trabalhei na livraria
do Zé. Lembro do dia em que sentamos no chão para assistir a uma conversa quase
íntima com Luiz Carlos Prestes. E ele me disse aquilo. Um homem pequeno,
franzino, de pele bem branca, enormes e aveludados olhos negros e uma cabeleira
farta, preta e encaracolada. Eu contagiada pelas intensidades emocionais de uma
escolha minha em tornar-me uma das “feministas de carteirinha” de Porto Alegre,
escolha que provocaria, mais tarde, em minha vida pessoal, a passagem de muitos
furacões, durante muito tempo, embora tenha realizado as condições subjetivas
para a minha própria salvação na vida madura.
E o cara me diz aquilo, que só de escrever aqui, nesta carta, já me dá
vontade de nem continuar o assunto. E agora estou eu, em 2017, combatendo o uso
corrompido do feminismo por Hollywood, o feminismo da multidão de fãs da Meryl
Streep, da Madonna e da Hillary Clinton, e prevendo que uma gigantesca greve
mundial de mulheres, chamada para o oito de março de 2017, rompa brutalmente o
vínculo ainda mantido entre a memória desta data e a memória das operárias que
morreram queimadas por serem operárias e não por se pensarem como feministas,
as memórias da revolução russa e as memórias das diferentes tradições marxistas
do planeta azul. Ponho-me aqui encurralada entre um desprezo registrado em
oitenta e uma deprimente constatação de que aquela afirmada captura do
feminismo pelos discursos padronizados dentro do capitalismo, defendida pelo
Zé, está em questão hoje. Imagino Zeferina do lado do Zézinho, ambos rindo
carinhosamente e curiosos sobre por quais caminhos seguirei nesse assunto
ocupado por aquelas unanimidades que tanto irritavam Nelson Rodrigues, o
crítico e teatrólogo brasileiro. Penso: a unanimidade é sempre burra e o
feminismo é inteligente. “Qual feminismo”? Vocês dois, às gaitadas de galpão,
me perguntam.
Daí, sem saber por onde ir,
sozinha dentro de uma única e velha Kombi intelectual, resolvi ler, finalmente,
a Simone de Beauvoir. Surpreendo-me, encantada, com a evidência, ao menos nas
cinquenta primeiras páginas do “O Segundo Sexo”, de que a Simone entendia o
trabalho doméstico como um lugar vazio de dignidade. Fico então feliz e
tranquila por ter, ao menos, um fio da meada de um longo e emaranhado novelo
por meio do qual posso me assegurar de que há saída desse labirinto no qual a
maioria das mulheres do mundo se encontra agora. Há saída, vamos bem devagar.
“Se a
mulher se enxerga como o inessencial que nunca retorna ao essencial é porque
não opera, ela própria esse retorno”. Não vou citar as páginas, procurem. “As mulheres não dizem nós”, escreveu Simone
de Beauvoir, os proletários e os negros conseguem se ver como um sujeito
coletivo, ela falou. “Efetivamente, ao
lado da pretensão de todo indivíduo de se afirmar como sujeito, que é uma
pretensão ética, há também a tentação de fugir de sua liberdade e de se
constituir em coisa”. Exatamente aqui parei e lembrei-me de Fernando
Henrique Cardoso, quando ele dizia – junto com outros tantos intelectuais das
universidades brasileiras da década de sessenta – que o negro escravo só não
era coisa quando cometia um crime. Depois fui me olhar no espelho, eu, quase
uma velha de quase sessenta anos, e pensei:
“eles nos colocaram novamente
mudas, Zeferina; transformaram em coisa tudo aquilo que não fosse ideal vendido
pelos artistas, modelos, jogadores de futebol, cantores e âncoras de televisão.
Tudo aquilo que não fosse discurso de pós-pós-doutor de centros acadêmicos
impulsionados desde os Estados Unidos, a França, a Alemanha e o Japão.
Transformaram nossos bordados, rendas e colchas de crochê em nadismos da tradição, nossas comidas
feitas em casa, nossas limpezas contínuas e intermináveis, nossos cuidados de
fraldas de todos os tamanhos em resiliências aparvalhadas dentro de um mundo
incompetente em distribuir food trucks
(as antigas carrocinhas de cachorro quente)
e restaurantes étnicos para todas as populações, incompetente em distribuir
restaurantes e creches baratas em tempo integral, para filhos de operárias
postas em jornadas de 12 horas por dia coladas em sistemas operacionais
informatizados. E o que está fora do que eles desejam, esses humanos famosos e
falantes, é coisa ou crime. E nós ficamos aqui, em casa, quase todas héteros tão fora de moda (mas não todas),
comportadas com nossos velhos homens ou nossas já acalmadas solidões de
mulheres velhas, nós e eles e as nossas casas embrulhadas em um lugar
novamente, como sempre – desde milênios – transformado em um nada sem direito à
palavra política, civil, pública”. Fiquei furiosa.
Voltei pra frente do computador,
ajeitei a página da próxima carta e escrevi: “Querida Zeferina, esses bem
falantes nas telas das multidões, eles que vão todos às putas que os pariram”. Mania
que essa gente famosa tem de chamar a casa e os corpos das gentes de coisa. Que
gente doida! Como se sonhos de sermos carismáticas, importantes, livremente
irreverentes, livremente ociosas ou intelectuais devessem nos inundar e
definir. Como se a história dos homens, dos coronéis, das fábricas, dos centros
tecnológicos, dos donos e dos grandes artistas devesse definir o essencial da espécie humana.
Zeferina, queria eu ter dito ao
Zé uma vidência falada assim: “a única coisa que vai sobrar de pé no mundo, no
século vinte e um, vai ser aquilo que a pessoa puder chamar de lar, de minha
casa, de “minha terra”, minha cidade”. E isto se ela, a pessoa, puder falar
assim. O resto vai estar virado em coisas. Coisas mutantes de significado,
coisas atiradas ao pedaços nos lixos, nas sarjetas, nos campos de refugiados,
nas telas de televisão, por aí.
Segundo Simone, “mantida à margem
do mundo, a mulher não pode definir-se objetivamente através desse mundo e seu
mistério cobre apenas um vazio”. Mas ela, Simone de Beauvoir, era o que de
melhor se podia ser em 1949, depois da segunda grande guerra. Para honrá-la,
deveríamos ser muito mais múltiplas e complexas do que ela. Deveríamos,
sobretudo, poder habitar uma pequena Kombi de um pensamento individual, sem
referência em telas de tevê, e, desde este pequeno lugar, nos entendermos como
nós. Nós.
versão um
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