Querida Zeferina - carta dois - espíritos absolutos

    
2 – Espíritos absolutos

                                      Querida Zeferina,

                                          Nunca me esqueci de uma resenha de um livro na Folha de São Paulo, faz uns 12 anos, 2004 talvez. Era sobre a difusão de conteúdos dos pensadores mais clássicos, em filosofia, política, economia, antropologia e psicanálise, de tal maneira que muitos humanos comuns sabiam falar sobre eles sem ter lido mais do uma página sobre o autor. A mãe, que se orgulha de ler em inglês, traduziu uma parte pra mim e o autor dizia que talvez esse grande grupo de leigos soubesse falar melhor sobre os conteúdos porque falavam de entendimentos que se impunham à maioria. Os especialistas não raro forçavam interpretações talvez arriscadas demais, ou condizentes com os seus partidos políticos da época. Hoje, escrevendo essa carta, fui ao Google e achei o autor, Pierre Bayard, um professor, psicanalista e escritor francês, segundo uma resenha no topo da lista dessa colossal e infinita biblioteca virtual. O nome do livro era Como falar dos livros que não lemos, editado em português no ano de 2007, pela editora Objetiva. A resenha dizia ser “o domínio de uma obra ‘lida’ um conhecimento frágil e fugidio”. Outra resenha trazia, como título, a ideia de que alguém, para falar sobre um livro não lido, precisaria ter lido um conjunto enorme de livros, dando a impressão da existência de uma capacidade de erudição erguida como uma pirâmide centralizando toda a linguagem a partir do seu topo, em uma gigantesca engrenagem de produção de escritas no mundo humano, de cinco mil anos até hoje. Talvez esse livro do Bayard tenha sido uma vidência sobre o desmoronamento dessa pirâmide e a abertura para um mar de resenhas, páginas, frases soltas nas redes sociais, linguagens e entendimentos dispersos e sem vínculos. Não há mais um controle eficiente sobre o que pode ser escrito e o que deve ser lido e como ler, então posso escrever para ti, Zeferina. Finalmente.
                                       Nunca li Hegel, mas sei de sua escrita sobre o espírito absoluto de todo o acontecimento humano, e sempre imaginei ser esse espírito a verdade derradeira e inquestionável sobre todas essas escritas, livros e frases, a verdade sobre essa pirâmide controlada pelos discursos dos eruditos, a se projetar na história dos tempos futuros, desmentindo – total ou parcialmente – o dito pelos especialistas em livros de autores célebres.  Talvez eu tenha lido alguma coisa, sei lá, interpretações sobre Hegel, textos esquecidos ao modo anunciado por Pierre Bayard em seu livro nunca lido por mim, dele eu tenho conhecido a dedicada tradução literal da minha mãe, de seu primeiro capítulo, palavras de mãe que eu adorei e jamais esqueci. Assim que falar com um morto pode ter algum sentido hegeliano, pode estar relacionado a comunicar-se com a verdade geral, aquela que governa tudo no mundo.  Então falar de um modo sem medo de não ser entendida ou aceita. Ser indefinida ou imprecisa, rascunhar e reescrever sem dizer de si própria “eu sou uma escritora com direito a texto”, ou “eu não sou ninguém, ou eu sou ninguém e não posso deitar um texto no mundo, só posso ler os outros”. Não julgar, não ser julgado; repensar e estar em contato sempre, no ato presente, com essa verdade geral. Algo como “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, mas invertido, um Machado de Assis virado ao avesso, um direito a ser sem ser Machado de Assis ou alguém com direito a palavra. Mas é mais que isso porque é falar com uma mulher que deu à luz outra pessoa, um homem muito cruel, e este era o pai de outra que era minha avó. De verdade. Então seria falar sobre herança, talvez herança de desejos e de identidades. E, ainda, falar de identidade, relendo o Zigmunt Bauman, e de uma identidade agoniada, por vezes submetida a homens cruéis, vezes rebelde, em ruptura com esses mesmos homens, os homens do Érico Veríssimo, fugindo deles, Zeferina e as outras, mulheres rebeladas, dissimuladas, traumatizadas, elas também cruéis um sem número de vezes. Há coisas importantes sobre os homens gaúchos não contadas nos livros do Érico Veríssimo.
                                          Falando em desejos, o tal espírito absoluto hegeliano poderia também abrigar alguma ideia de “homem da vida”, não? Pois é, essa carta começou em 2010, dessa maneira: “Esfriou bastante. Estou cansada de abrir caixas e carregar móveis, com dores por todo o corpo, talvez por isso minha voz trêmula ao telefone. Falava com um Tristão. Acho que quase todas as mulheres que aceitam ou procuram homens para amar acabam tendo um Tristão. As mulheres do final do século vinte e início do vinte e um então, muitas delas, tendo mais de um desses em suas vidas: o cara no qual ela joga todas as fichas, se atira como se fosse mergulhar em uma linda piscina natural de peixinhos coloridos e água ensolarada e, quando se dá conta, em geral entre os trinta e os quarenta e tantos anos, quando não há mais tempo para uma nova estratégia, quando se dá conta o cara estava apenas passando por ali. Ulisses sem Penélope, o cara apenas passava em uma viagem na qual você, eu, não iria ser parte da bagagem dele por mais de um período. Não para a vida toda, não o homem da vida. A mesma mitologia que nos levava a acreditar em Tristões, nos encorajava a empunhar bandeira a céu aberto contra a ditadura militar, em 1979, como se essa ditadura fosse muito fraca e imoral que pudéssemos derrubá-la com gritos, e, ao mesmo tempo, muito forte e miserável que devêssemos apenas gritar nossos desejos ingênuos: queremos só o que é nosso. Mas, afinal, o que mesmo era nosso? Nunca soube o motivo da ligação, minha voz acabou trêmula pelo frio e pelo cansaço de ter de falar com ele, mais uma vez, uma fala sem destino, sem vínculo, mais um momento de abandono. Falei como sempre, sobre o mundo, sobre a vida. Antigamente, na época da ilusão, me encorajava pensando que se eu sobrevivesse ele reconsideraria. Penélopes esperando as voltas dos homens. Que nada, ele virou um homem comum, desses que se vê nos espaços públicos e você nem vê outra coisa a não ser uma multidão informe e sem graça, ilhada em uma covardia exagerada, temerosa, assustada, impotente. Só mais tarde entendi que aquele homem não era o cara certo pra mim”. 
                                          Essa é uma história muito louca das mulheres, penso agora, seis anos depois. Das mais tímidas evangélicas, até as mais bem sucedidas prostitutas, passando pelos inúmeros pontos intermediários na escala milenar dos livros lidos, as descrições das santas às abandonadas, todas facilmente elegem o último homem que tiveram como o único homem de verdade dado a ela pelo destino. Passamos facilmente de um grande amor a outro, até que as circunstâncias da vida determinem o fim da procura, uma acomodação, uma solidão ou uma vitória “meu marido”. Seguia a carta de 2010: “Minhas mágoas estão começando a sair, desmanchadas pelo ar e vento desse mar lindo e grande. A máquina de lavar instalada, grandona, bonita e eficiente, um pátio enorme e cheio de vento e sol. Minhas reflexões estão menos urgentes, levando-me a crer que talvez dê tempo, talvez eu não morra tão cedo”.

                                     Eu queria que desse tempo para escrever muitas cartas para Zeferina, pra ti, mas hoje o tema do Tristão não mais me atrai. Isso aí foi uma lenda medieval onde dois reinos enviaram seus filhos para se enfrentarem, eles eram uma princesa e um príncipe, Tristão e Isolda, e se apaixonaram, mas se combateram e foram infelizes até a morte.  Estava então escrevendo, em 2010, sobre aquilo das mulheres contarem sobre os homens que vão embora, que as amam mal, as abandonam. Aquilo que as mulheres ora os condenam e choram “ele destruiu a família”, ora dizem “ele era uma droga mesmo”. Depois dos trinta anos até as mais feministas, na maior parte dos casos, começam a se preocupar com o objetivo “família”, mesmo de um modo discreto, velado. “Vou casar” dizem sorrindo o sorriso da vitória. “Em uma união estável” no mínimo, no sobre das redes sociais. O “homem da vida” seria um espírito absoluto? Ou seria uma parte desse espírito, um pedacinho dele para cada uma das mais afortunadas, isto sendo um lugar de pequenas variações, contradições e sínteses, amarradas por grandes conteúdos mutantes, mas sempre retornando almas fundamentais, como essa do “homem da vida”.  Confesso que desde o primeiro momento em que vi essas meninas vestidas de preto, lá por 2012 começaram no Brasil, autodenominadas “vadias”, senti aquela decepção feminina típica, tradicional, arquetípica, tão cruel, um misto de inveja e de crítica madura da mulher mais velha acerca das brincadeiras alegres das mocinhas de pele fresca e macia. Pensei “mas no meu tempo eram saias de panos de fralda, entremeadas de rendas, tudo muito transparente, seios jovens dentro de camisetas de algodão, sem sutiã, uma coisa hippie; gritávamos por liberdade”. Ponderei “agora elas gritam por liberdade também, mas não a mesma que bradávamos em 1978, e com essas roupas de novela das oito da Rede Globo, roupas de teatro, e afrontam diretamente os homens, impõem desafios ostensivos, cospem no chão quase”, e conclui “isso não vai dar certo, isso não fara nem cócegas no desejo mais profundo de cada uma delas e de todas as outras para quem elas falam”. Desprezei, mas aplaudi como era obrigado dentro do código de conduta rígido daquela esquerda que se impunha, mas que logo se viu desmantelada pelos homens mais distantes do espírito absoluto “homem da vida” que o Brasil poderia produzir. Talvez homens barba-azul, minotauros de gravata e ternos escuros.  Você sabe muito bem de que homens estou falando, Zeferina, os homens do Érico Veríssimo. Coitadas das meninas dos movimentos das “vadias”, das chamadas “marchas”, parece até que elas foram o espírito absoluto, o de Hegel mesmo, vomitando as bacantes da tragédia grega de Eurípedes em um cenário prestes a mergulhar em uma convulsão chamada por muitos de golpe, um sofrimento a conta-gotas e que se tornou permanente, a partir de 2016. E eu com essa detestável conduta de velha de sempre, cética de uma descrença de china velha dos campos, também eles absolutos, do Rio Grande do Sul, pensando o que as velhas sempre souberam, pensando “eu sabia”. Sabia o que as velhas sempre sabem,  ao menos as gaúchas, as Anas Terras, isso que o tal espírito absoluto está careca de saber. As meninas precisam ser protegidas, as mulheres jovens precisam de homens fortes e mulheres velhas cuidando delas. Essa propaganda de mulheres jovens andando livres por aí não é a verdade da grande pirâmide dos livros, não está no espírito absoluto do Hegel. As mocinhas frescas precisam de proteção para que possam vadiar em lugares protegidos, vadiar em paz, lamento dizer essa verdade, Zeferina, tu sabes, assim como as mulheres adultas sonham com bons maridos, a certa altura da vida. As ditaduras não são derrubáveis, elas vão embora quando se cansam de nos agoniar.

versão dois. foto: Ireno Jardim

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