Querida Zeferina - carta 3.1 - cistite, o macho e os cobertores


                                       
                                          Querida táta,


                                     Estou com um roteiro já bem cheio de assuntos para falar contigo. Agora estou com cistite, toda dolorida e sensível, sentada perto da porta aberta do banheiro, pronta para sair correndo. Agora resolvi escrever essa carta aqui, saindo fora do roteiro um pouco, mais espontânea ainda, já que paro para correr ao banheiro e escrevo sentindo uma ardência pungente. Talvez assim fique mais claro o que digo por aqui nesse mundo todo ele embrulhado em autismos de novos tipos, contaminantes de suas linguagens, uma torre de babel como a da bíblia: ninguém se entende e todo mundo vocifera certezas absolutas.
                                    Agora penso que esta cistite representa bem uma parte importante do que preciso dizer aqui neste planeta esquizofrenizado, ao menos falar a alguns que podem me ouvir. Como poderia eu falar a elas e eles e ser entendida sem ter que fazer um tratado do tamanho do livro da Simone de Beauvoir? Estou lendo o Homo Deus, do Harari, já falei a você, Zeferina? Tanto quanto ao ler O Segundo Sexo da Simone, neste livrão do menino israelense famoso dá pra você sentir o que eles querem dizer já nas primeiras cinquenta folhas. O que eles têm em comum é uma forte erudição no conjunto temático que abordam. Eles são cada um uma espécie de “Google” sintético sobre os seus assuntos. Sabem tudo e mais um pouco. Mas o conteúdo do conjunto da obra de cada um acaba sendo mesmo uma frase simples, dita por qualquer humano sem estudo algum, todos os dias: “eu acho que tal coisa é assim e deveria ser assado”. O livro do Harari, por exemplo, defende que de dentro do conhecimento produzido pela espécie humana homo sapiens vai surgir uma nova espécie, ou mais de uma, e não necessariamente de um formato que pudesse ser chamado ainda de humano. O guri defende que estamos criando máquinas que até podem se tornar autônomas e se reproduzirem como uma espécie de organismo coletivo, e que esse tipo de acontecimento pode vir a dominar não só o planeta Terra, mas também todo um largo território do cosmos, do universo; esse que a gente imagina por fotos de satélites altamente potentes, mas nunca semelhantes ao olho humano diretamente posto em ação. Ele defende então que o ser humano pode estar em extinção, e isso a se realizar nos próximos cinquenta anos. Ou cem, no máximo. E o cara, esse menino, vende milhões de exemplares dos seus livros pelo mundo, esse nosso cheio de humanos destrambelhados. Fico imaginando que efeito o pensamento dele pode ter em quem o lê. (banheiro correndo). Também estou nos primeiros capítulos da Simone e já tenho a sensação de saber o que lá está escrito. Juro que vou ler todo o livro e respeitá-lo, mas agora estou pensando ser o trabalho doméstico um tema tratado pela companheira de Sartre como um padrão de acontecimentos secundários, em termos de valor, aos acontecimentos realizados no mundo público onde se faz a política, o saber da arte reconhecida como tal, com A maiúsculo, o saber do conhecimento acumulativo e histórico das engrenagens tecnológicas que geram a história humana desde o domínio do fogo e a invenção das armas de metal. Lembro que Marx também entendia o mundo da reprodução humana como um mundo natural e o mundo da produção de riquezas, máquinas e mercadorias como um mundo histórico. Tenho essa impressão porque a dama existencialista começa seu pensamento pela ideia de que o lugar do trabalho doméstico é um território inessencial, lugar de coisas, de nadas políticos.
                                          Passam pelo meu pensamento um milhão de ideias, passam correndo e eu não tenho tempo para trazê-las aqui, agora. Sempre se tem, nesse mundo que começou em Galileu e Copérnico e veio até os autodenominados “pós-doutores” brasileiros e super-phDs americanos e europeus, a necessidade de construir explicações enciclopédicas para qualquer ideia que queria salvar-se da margem das postagens domésticas no facebook. A ideia matriz do saber absoluto domina a espécie humana atual, sapiens sapiens, e é ela que comanda a espinha dorsal tanto do livro de Simone quanto do livro do Harari, um phD em história, que tende a afirmar serem os homo sapiens mais burros do que seu filho, o computador, e que poderão vir a morrer (como morreu o deus em Nietzsche) para dar lugar ao filho, o sujeito inorgânico: “Depois de quatro bilhões de anos perambulando no reino dos compostos orgânicos, a vida eclodirá na vastidão do reino inorgânico e assumirá formas que não podemos vislumbrar mesmo em nossos sonhos mais loucos. Afinal, esses sonhos ainda são produto da química orgânica” (na introdução do Homo Deus). Então é o mito originário de que o conhecimento acumulado em maior quantidade e mais apto a convencer coletividades inteiras, ou ser usado para a fabricação de instrumentos para dominar, pela força ou pela ilusão, essas mesmas coletividades, esse conhecimento é essencial, sendo inessencial ou coisa tudo o que não o compõe como fórmula, receita, química ou, como dizem os guris gerentes do nosso mundo autista, algoritmos. Tomei um remédio para dor e ele está começando a fazer efeito. A porta do banheiro já está fechada, agora. A máquina de lavar está produzindo cobertores limpos e eu os estendo no sol desafiador que invade e esquenta furiosamente o mundo lá fora.
                                     O trabalho doméstico não é esse tipo de conhecimento, ele não integra a mitologia do saber humano da espécie sapiens sapiens, a não ser naquilo que nele afirma  mercadorias a somarem à mitologia milenar do domus como um lugar materno-infantil. O saber materno doméstico não é mensurável. Claro, inúmeras coisas dentro da casa de cada um de nós –as antigas produtoras titulares do trabalho doméstico e os atuais casais que o dividem mais ou menos igualitariamente- são objetos fabricados. Algumas de alta tecnologia, como as máquinas de lavar, sagradas para qualquer tipo de feminismo. Mas o fazer cotidiano da limpeza da casa, dos panos, das peças, das louças, dos móveis, o fazer cotidiano do preparo de comida, mesmo quando a partida se dá com pré-cozidos industriais, é um conhecimento não pensado na academia, a universidade, não pensado nos locais onde todos se esforçam por produzir discursos enciclopédicos, políticos, filosóficos, historiográficos. Esse fazer cotidiano só é pensado no mundo intelectual quando se trata de metamorfoseá-lo em mercadoria vendável. Aí ele passa a ser culinária étnica e ou sofisticada, técnicas em geral associadas ou a produtos ou a ideias de sedução ou redução de esforço. E é aí que começam a aparecer os homens na produção desse trabalho. Mas sempre fica aquele lugar natural, um lugar onde há um conhecimento contido ali, ágrafo, iletrado, sem cálculos de produtividade, valor ou sabedoria. Passam muitos pensamentos por mim, agora, e não há como enfeixá-los em uma ordem algorítmica. Talvez meu pensamento seja um pouco referenciado nessa epistemologia do doméstico e talvez alguém deva tentar explicar como esse tipo de pensamento se dá. Ou talvez o segredo do agir no lar deva ficar como está e a hipertrofia desse mundo humano das linguagens enciclopédicas deva ser repensada.
                                       Estou quase indo correndo fazer mais um xixi ardido. Como uma criança trançando as pernas e evitando o banheiro para continuar o brinquedo, falo agora o que me parece crucial no momento (xixi primeiro, já volto). O macho da espécie humana não deixou de fazer o trabalho doméstico por arrogância, ou por uma necessidade violenta de uma natureza própria a sua condição potencialmente viril. Talvez essa ideia de que na virilidade esteja a produção violenta seja um preconceito. Acho possível afirmar que o macho homem era o único ser humano não obrigatoriamente implicado naquilo que era, nas cavernas, o domus das relações de reprodução humanas: mulher grávida, bebês, doentes e velhos. Ele era o único ser humano que poderia proteger esse agrupamento complexo e doméstico de reprodução humana, o único que poderia pegar algum instrumento tornado arma e proteger a coletividade de algum ataque de outro animal ou de outros grupos étnicos ou mesmo outros tipos de humanos. Isso porque ele nunca teve a capacidade de engravidar. Então, durante quase todos os setenta milhões de anos da sua existência (exceto os últimos séculos, a partir da invenção das máquinas domésticas e as químicas de controle da reprodução, como os hormônios e as barreiras mecânicas qualificadas, como os modernos dispositivos intra-uterinos), o macho da espécie humana foi obrigado a desenvolver mitologias que o capacitassem a superar o medo do mundo exterior, ameaçador, inóspito, e que permitissem a ele garantir a paz doméstica, na medida do seu alcance. É preciso entender isso, Zeferina. Não é? É preciso entender a historicidade dessa divisão entre o doméstico e o político. E, o mais importante que desejo dizer agora, a hipótese de estarmos vivendo o fim dessa divisão tal como ela se deu desde dezenas de milhões de anos não deveria nos autorizar a descartar o conjunto da memória humana armazenada na condição de macho ou de fêmea da espécie sapiens sapiens. Sim, as mulheres desejam direitos e liberdades, desejam que os homens cuidem dos filhos e das casas também, desejam ser profissionais respeitadas, desejam  um sexo não violento, mas não sei se desejariam que sumissem inúmeros valores que distinguem o macho humano da fêmea. Se precisamos sair de formatos construídos pela tradição milenar, formatos do ser homem e do ser mulher, por que exatamente precisamos fazer isso ao ritmo alucinado da produção de novíssima tecnologia em medicina, da produção de robôs, de nanotecnologia, de bioquímica de última geração? Por que deveríamos nos submeter ao pensamento de que o conhecimento enciclopédico, esse produzido no mundo público, político, predominantemente dos homens, deve determinar a velocidade dos acontecimentos humanos, nesse século vinte e um?
                                              Mais um cobertor está quase pronto para ir ao sol. Estou comendo rodelas de abacaxi. Ora, minha querida Zê, você não acha que há uma lógica muito simples, delicada e modesta, doméstica, a nos dizer, a nós, mulheres, que se somos a espécie humana sapiens sapiens e se algo nos ameaça a existência somos nós mesmos que devemos nos proteger? E não podemos fazer isso com calma, pensando bem, aproveitando as opiniões e sensações de bilhões de humanos? Não podemos pensar isso mais lentamente, com a naturalidade com a qual fazemos os trabalhos domésticos que são bem feitos?  Por que deveríamos apressar-nos e dizer que o macho humano não presta, que a fêmea humana deve ser superada, que toda e qualquer lógica milenar humana perdeu o sentido?
                                                O melhor trabalho doméstico humano é manual, artesanal, lento e calmo. Os cobertores estão perfumados, o sol inunda o verde em volta da minha casa.


versão dois. foto: arquivo pessoal

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