Derrida, os náufragos e os digitadores domésticos



Minhas deusas queridas,

“Sem Deus, não haverá testemunho absoluto. (...) A atestação, isto é, também o testamento. Na irreprimível invocação de testemunho, Deus permaneceria, então, um nome da testemunha, seria chamado como testemunha, assim nomeado, ainda que, por vezes, o nomeado com esse nome permaneça impronunciável, indeterminável, em suma, inominável em seu próprio nome; e mesmo que ele deva permanecer ausente, inexistente e, sobretudo, em todos os sentidos desta palavra, improduzível. Deus: a testemunha enquanto “nomeável-inominável”, testemunha presente-ausente de qualquer juramento ou de qualquer garantia possível. No pressuposto de que, concesso nom dato, a religião tenha qualquer relação com o que assim nomeamos Deus, ela pertenceria não só à história geral da nomeação, mas, de forma mais estrita aqui, sob seu nome de religio, a uma história do sacramentum e do testimonium. Seria essa história, confundir-se-ia com ela. Durante o trajeto de barco que nos conduziu de Nápoles para Capri, eu comentava comigo mesmo que começaria por lembrar essa espécie de evidência luminosa demais, mas não ousei fazê-lo. Comentava também em meu foro íntimo que ficaríamos obcecados pelo fenômeno dito ‘da religião’ ou do ‘retorno do religioso’ hoje, se continuássemos a opor tão ingenuamente a Razão e a Religião, a Crítica ou a Ciência e a Religião, a Modernidade Tecnocientífica e a Religião. No pressuposto de que se tratasse de compreender, compreender-se-á algo ‘do-que-se-passa-atualmente-no-mundo-com-a-religião’ (e por que ‘no mundo’? O que é o ‘mundo’? O que é esse pressuposto?, etc.) se continuarmos a crer nessa oposição, inclusive nessa incompatibilidade, ou seja, se permanecermos em uma certa tradição das Luzes, somente uma das múltiplas Luzes dos últimos três séculos (não de uma Aufklärung cuja força crítica está profundamente enraizada na Reforma), antes, pelo contrário, essa luz das Luzes, que atravessa como um raio, um só, uma certa vigilância crítica e anti-religiosa, antijudaico-cristã-islâmica, uma certa filiação ‘Voltaire-Feuerbach-Marx-Nietzsche-Freud- (e até mesmo) Heidegger’? Para além dessa oposição e de sua herança determinada (aliás, tão bem representada do outro lado, do lado da autoridade religiosa), talvez pudéssemos tentar ‘compreender’ em que aspecto, longe de se opor, o desenvolvimento imperturbável e interminável da razão crítica e tecnocientífica transporta, suporta e pressupõe a religião. Seria necessário demonstrar, e isso não será simples, que a religião e a razão têm a mesma fonte.” Pg.43 (Derrida, Fé e Saber, em A Religião: o seminário de Capri/ org. Gianni Vattimo e Jacques Derrida; Estação Liberdade, 2000, SP.)
 
Estou faz dois dias querendo escrever, baseada no raciocínio de Derrida, de como o trabalho produtivo e industrial se conecta, na forma de um indecidível, uma razão dialética sem síntese, ao trabalho doméstico disciplinado, ao modo como o vivemos hoje em dia. Os dois são formas de traição e perversão da dignidade e saúde do corpo humano e dos corpos dos outros animais e dos vegetais e minerais, e da água é claro. O trabalho doméstico é feito  com amor diminuído e subalterno à importância única e exclusiva do trabalho produtivo e de valor comercial: as mulheres tentam manter a sua e a dignidade dos seus familiares, mas fazem isso com boa dose de inveja, maldade, rancor e desligamento de idéias criativas sobre preservação e qualidade daquilo que fazem, ainda que façam tudo, há milênios, com todo o cuidado que lhes sobra, no seu pensamento reduzido à ausência de valores enunciáveis, mulheres emudecidas. À violência e brutalidade da indústria corresponde a repetição inglória do cuidado da vida no lar. O lar acaba sendo um lugar de menos-valia, reduzido à recuperação da força de trabalho industrial ou ao poder do comando industrial.
 
É nesse lugar doméstico estranho, privado e íntimo mas também inglório (que não aparece nas televisões, nem -realmente- nas redes sociais, lugar das brigas mesquinhas, repetitivas e inconclusas), nesse lugar das solidões sinceras, que vemos o sexo perder o sentido, a memória e envelhecer.
 
Transcrevi o trecho do Derrida sobre religião para  pensar sobre o caráter religioso da tecnociência, da vida do consumo e da indústria,  para mover-me em direção a uma reza, uma oração que pudesse ser realmente válida para mim. Se há algo fora do campo de conhecimento racional, fora do espaço visível pelos humanos, deveria chama-lo de "Senhor", de "Senhora", ou de "vocês"? A quem me dirigir se quero rezar? Que forma tem o meu "absoluto testamentário"?
 
Minha reza é meu pensamento silencioso e esse banal momento do teclar e teclar e publicar nas redes sociais. Estamos todos digitando e publicando rezas nas redes sociais. Queremos falar com quaisquer deuses ou deusas, ou territórios sagrados, com quem quer que possa interferir nisso tudo que nos acontece agora: terremotos, inundações, assassinatos de negros e mulheres em grande escala, o estúpido poder sem nomes, sem responsáveis finais, que indica um futuro de escravidão e guerras civis.  É uma reza que todos fazemos agora, pelo mundo inteiro, pedindo o estar em paz, imanente e esperançoso ao mesmo tempo; pedimos para sermos transportados para onde está a real e comprovada paz de espírito, saúde mental e física e conforto compassivo cotidiano; nossas rezas são a esperança de que este espaço de vida boa continue e aumente, um dia, na vida de todos nós. Nossos deuses e deusas são a esperança apoiada no que já conseguimos manter de segurança amável e pacífica, subversiva ao logos e à mímesis construída em todos os milênios de poder masculino-patriarcal e feminino-matriarcal dos humanos da atual espécie, sucessora de todas as outras até então.
 
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Está pronta a comida e o esposo não tarda a chegar. Lembrei-me, enquanto cozinhava, de um concurso de jovens, realizado pela Ana Maria Braga, para escolher o melhor chef de cosine, o gourmet da hora, dentre estudantes de culinária selecionados pela produção do programa. No decorrer do concurso vários deles se cortaram porque tudo tinha de ser realizado em tempo recorde, tudo muito rápido e, muitas vezes eles não conseguiam o ponto certo dos cozimentos porque faziam tudo correndo, atrapalhados. E agora, na propaganda eleitoral do rádio, a Angela Amin, candidata dos Democratas, o que corresponderia à velha Arena do tempo da ditadura militar, respondeu à pergunta: ‘você não está muito cansada de tanta correria de campanha?” dizendo: ‘não conheço esta palavra ‘cansaço’, ela não existe em meu vocabulário'. Depois os mesmos candidatos dizendo, junto com todos os outros, que defendem a família, a mulher, a criança, a escola, os velhos e etc. E tantos, a essas alturas, repetindo o refrão banalizado de um tal "desenvolvimento sustentável", enquanto milhares de africanos são transportados para a morte no Mar Mediterrâneo.
Sustentável seria poder polir uma chaleira em paz, gastando tantas horas quanto essa tarefa exige; sustentável só pode ser a atividade doméstica demorada, gastando todas as horas necessárias para costurar o descosturado, repregar o partido, polir o manchado, passar o que está úmido, dobrar mil vezes todos os panos de todos os dias. Não há desenvolvimento sustentável sem atividade doméstica ocupando a maior parte do tempo dos seres humanos, incluindo aí o tempo livre, o ócio, a vida lúdica, o sexo bom para todos. Digitemos, irmãos, amém.

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