A bugra velha - versão dois - Bar da Rarlet


O Bar da Rarlet, um prostíbulo de beira de estrada frequentado por caminhoneiros, estivadores, pedreiros e nômades, apareceu como uma pequena construção de material e madeira, com luzes vermelhas comuns coroando a fachada. Na frente, um muro de uns dois metros de altura, de tijolos e pintado de branco, escrito em letras pretas de um metro e meio, maiúsculas: BAR DA RARLET, o letreiro ocupando todo o muro que daria para ver  de muito longe. Quando essa história começou, ele foi emergindo da névoa desimportante e apareceu como um castelo encantado em um terreno enorme e cercado um tanto por um muro alto, outro tanto por paredões de hibiscos. A grande construção da frente, dois andares, o bar embaixo e a casa da “Halê” em cima; atrás, à esquerda, as casinhas das prostitutas com formatos diferentes, cores diferentes, qualidades distintas formando duas fileiras de casas voltadas para um pátio interno, um jardim. Ao lado direito do bar, para quem observa olhando a sua porta de entrada, um terreno ocupado por um pomar atrás do qual ficava a lavanderia, um espaço com varais internos e externos, um canto como um grande estar com fogão à lenha, máquinas de lavar, fogão à gás, um balcão de mármore com pia, um tanque grande para deixar roupas de molho, tudo isso acolherado ao quarto do porteiro, o enorme ogro de nome Jonas, um sujeito deficiente por sequelas de uma infecção infantil, manco, torto. Depois da lavanderia uma fileira de vagas para carros em um estacionamento ao lado dos fundos do conjunto das casas das putas. Um enorme e confortável empreendimento.
Um dia uma mulher mestiça, pele escura e cabelos longos agrisalhados e amarrados em uma trança procurou a dona do bar, dizendo ser uma atriz e propondo um contrato estranho. "Quero alugar seu bar para apresentar peças de teatro, músicas, mímicas"; a bugra já não mais uma mulher nova explicou: "são performances experimentais para noites sem clientes importantes, vazio o seu bar, ou com um ou outro; e a senhora explica a seus clientes chegados, habituais, e a suas moças o meu caso e que tenham paciência de assistir, afinal estarei pagando". Rarlet, mulher forte, peitos bons, altiva, cabelos aloirados em mechas, boca vermelha sempre pintada, olhos verdes de águia, cigarro nos dedos de unhas para se olhar, perfumes cítricos ou amadeirados, ainda uma mulher não velha, surpresa com a bugra, lhe dá abrigo. "nas terças, terças; a senhora usa meu palco, o microfone e a luz, se quiser; pagando e não machucando ninguém...", a dona ri, uma ex-puta ainda bonita, "mas não demora muito, né?, ninguém tem paciência". Não era burra, sabia falar mais do que um qualquer. Riu aquela risada de galpão dos bons tempos daquela fronteira sul do país Brasil, quando as mulheres ainda riam às gaitadas. Ninguém sabia, nem podia imaginar, o quanto os barulhos de alegria escasseariam no ano seguinte.
Dona Ana, com seus olhos de monge indiano, distantes e felizes, respondeu: “é pouca coisa, dona Halê, começa e acaba logo". Ri um riso menor, simpática. “É Rarlet”, a dona soletra, “mas eles dizem Halê, aqui ninguém sabe escrever direito”, diz sincera e crua. “E sobre o que, dona Ana”? Rarlet gerente, policia federal, diziam brincando, que naquela época o mais importante era ser "federal", falavam os homens e concordavam as putas. Isso foi em 2015, quando os federais andavam prendendo gente grande, tudo era escândalo na televisão, até que teve o acidente com os meninos daquele time de futebol mais querido do país, no ano seguinte, 2016. Foi bem um ano antes daquela tristeza sem tamanho, uma ano antes começou esta história. A bugra riu e saiu andando em direção ao palco no fundo do bar, à direita de quem entra, olhando as mesas com seus abajures distintos uns dos outros, mesas grandes para os bandos de estivadores e caminhoneiros quando o porto se mexia como um formigueiro em dias de carga e descarga, mesas pequenas para os casais de fora ou de parceiros já estáveis das moças de programas, a já mais velha - mas ainda atlética - Ana atriz, num passo indelével marcado pela leve artrose nos quadris, andar cuidado, arredondado pela gentileza com seus próprios ossos, quase não dava pra ver, mas a cafetina entendia de corpos, era uma especialista.
 Ana dançou uns passos rápidos de street dance tornando-se súbito uma figura jovial para a dona do bar ver, subiu as escadas poucas de acesso ao tablado de madeira antiga e escura e falou, lá em cima: "a senhora já parou para ver criança brincando?"; e Halê, se sentindo contagiada pelo olhar espelho, olhar de águia que a mestiça então lhe ofereceu, sorriu imaginando coisas, pensando que talvez fosse uma louca. Mas dava pra ver que era atriz, podendo até ser comediante, quem sabe. Combinaram de boca um preço, um tempo, um dia. Foi depois que a índia atriz alugou a casa na praia, invadiu a cidade pequena, ainda, com um caminhão entulhado de coisas urbanas e cosmopolitas e assentou-se naquela cidade portuária. Não digo o nome que é pra você não procurar no google, pra não fazer fofoca por aí, porque vou te contar segredos e porque, você sabe, é uma dessas histórias que você vai encontrar em qualquer lugar. Daquela situação se poderia contar um número grande de histórias, do cinzento Licurgo, dos desatinos da menina Leine, das brigas no Porto, dos medos, e tudo acabaria sendo uma versão século XXI do mesmo de sempre, do amor da vida, aquele destino que os grandes e as lindas decidem percorrer. Mas o caso aqui não é esse amor da vida, embora acabe sendo, o caso é que, naquele tempo, a morte passou a se aproximar. A malina andava tão perto de todo o mundo que a vida, toda ela, de todo mundo, começou –assim, do nada – a como que se encantar. Como naquele romance de 1950, A Peste, de Albert Camus, onde se lia: “Meus irmãos, a hora chegou. É necessário crer em tudo ou negar tudo. E quem entre nós, ousaria negar tudo?”.

 É isso, é sobre isso.

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