Pois fui ler Nietzsche, acreditem, durante a viagem de
ônibus para Porto Alegre, para participar do lançamento de uma candidatura da Insurgência,
uma corrente do Psol, para deputado federal, o Almerindo Cunha, um gari. Assim,
tentando relaxar, comprei um livrinho de bolso, da L&PM, e era o cara, o Anticristo,
o livro. Estava em uma estante, na lojinha do restaurante de beira de estrada,
eu olhando, sonolenta, para quem sabe comprar um velho e bom Agatha Christie,
dos tempos de infância. Estava lá o bigodudo furioso contra tudo e contra
todos, o cara do super-homem, de quem
a maioria tinha medo.Em quem votaria Nietzsche, hoje, no Brasil? Claro, esse
tipo de pergunta é por si equivocado, porque o texto do filósofo de Zaratustra
só poderia existir no exato tempo em que apareceu e, ainda que recorrêssemos às
noções de reencarnação, poderíamos, quando muito, recuperar a proposta básica
do autor, a da crença na paixão, na potência do desejo: “O que é bom? – Tudo o
que eleva a sensação de poder, a vontade de poder, o próprio poder no homem. O
que é ruim? – Tudo o que provém da fraqueza. O que é a felicidade? – A sensação
de que o poder cresce, de que uma resistência é superada.”, (pg.14). Ou seja,
poderíamos transferir uma personalidade, um espírito para alguns, uma índole ou
um ethos, mas não as mesmas circunstâncias históricas.
Lendo, no ônibus, atirada em duas cadeiras já que poucas
pessoas viajam em dia de semana e no inverno, da praia para a capital gaúcha;
vestida irreverentemente com uma calça de pijama, tênis, camiseta e casaco
velho, vejo que não amo mais o bigodudo tanto assim quanto amava na virada de
ano, 2001, na qual passamos sós, eu e Nietzsche, eu querendo provar para mim
que sozinha era melhor do que mal acompanhada, ele defendendo que os
inteligentes eram solitários e minoritários, um grupo de seres humanos mais
lúcidos do que a grande maioria. Não que ele tenha deixado de ser delicioso
também para os tempos atuais, se menos neurótico um tanto, se mais sensual e
alegre outro tanto, se um pouquinho adaptado ao feminismo do meu século, mas o
furor com o qual ele rejeitava o pensamento transcendente não se aplica mais,
nos mesmos termos, a um Planeta Terra habitado por uma espécie humana que não
tem a menor ideia de como conter eficientemente a sua própria extinção, ou
seja, já há quem diga que a maior objetividade viria de uma organização social
que conseguisse estabilizar um contexto na relação ambiente e ser humano que
não apontasse para uma vitória das bactérias e dos vírus sobre nós, nós os
maiores predadores de toda a existência desse planeta, que ninguém sabe se é ou
não o único que tem gente como nós, ou ao menos parecida. E, a essas alturas,
essa organização social não precisaria estar baseada nem ideais “Kantianos”,
que eu não sei direito quais são, mas que Nietzsche dizia que não continham
“retidão intelectual”, tão pouco em ideais “nietzschianos” da potência da
liberdade:
“Todos
eles [intelectuais] fazem o mesmo que as mulherzinhas, esses grandes
entusiastas e bichos raros- eles tomam os “belos sentimentos” já por
argumentos, o “peito erguido” por um fole da divindade, a convicção por um critério de verdade. Por último, ainda
Kant, com inocência “alemã”, tentou tornar científica, sob o conceito de “razão
prática”, essa forma de corrupção, essa falta de consciência intelectual: ele
inventou uma razão expressamente para o caso em que não é preciso se preocupar
com a razão, ou seja, quando a moral, quando a sublime exigência “tu deves” se
faz ouvir”, (pg.26).
Há em Nietzsche uma boa quantidade de
descompromisso com o dever ser e com
a culpa, qualidades por ele atribuídas aos intelectuais e aos sacerdotes que,
por sinal, o bigodudo furioso dizia serem todos iguais, dizia assim, esse
alemão, desse jeito feminino e niilista,
como as mulheres são com relação aos homens. O alemão igualava racionalistas e
criacionistas, esses dois blocos que hoje, no Brasil, são vistos pelos
publicadores da opinião normal como
sendo inimigos mortais: segundo os fluxos de mídia, os brasileiros racionais e
cultos, favoráveis à candidatura Dilma, e os brasileiros alucinados e incultos,
favoráveis à candidatura Marina. Será? Será que Nietzsche não veria hoje
com bons olhos essa oposição entre a modernidade empedernida e a insubmissão
fundamentalista ao mundo prostituído e drogado pelo consumo? O alemão denunciava,
com a galhardia de um rockeiro punk, a tal modernidade e sua “religião” do
progresso e a igreja papista da época,
que ele denunciava andar a par e passo com essa mesma modernidade,
contendo a mesma enfadonha racionalidade, por sinal herdada pelos cristãos de
tradição, no Brasil, os católicos, que desenvolveram na pátria descoberta –
invadida, violada - mais um papel de Estado nacional do que teológico,
organizando os casamentos, fazendo registros em cada lugar de um país que nem
Estado tinha, um país de coronéis e sinhozinhos, donos, donos de todo mundo.
Minha paixão por Nietzsche arrefeceu porque me dei conta de
seus limites históricos. O alemão não tinha a menor ideia de que a potência da
espécie humana encontraria seu limite em um planeta pequeno e frágil. Bom, nem
ele e nem todos os filósofos dos séculos XVIII e XIX, pelo pouco que roubei de
informações e conhecimento do mundo dos super-homens
do conhecimento racionalista. O bigodudo brabo não pensava nos problemas
derivados da fragmentação da memória coletiva, na liquidificação dos
ordenamentos micromoleculares e macrossociais da cultura dentro do modo de vida
fabril-eletrônico do capitalismo tardio. Nietzsche foi um crítico ao mundo
moderno sem avançar a crítica ao seu componente fundamental, o mito da
inevitabilidade do sentido fabril no funcionamento humano, a crença, a fé
inabalável no dom da invenção, a criação, o fundamento maior da identidade
dessa espécie humana atual. Pelo pouco que li, Nietzsche não era nada
ecologista, até por viver em uma época na qual as roupas eram lavadas por mulherzinhas intensamente oprimidas, em
tinas enormes e cheias de água quente e algum solvente bruto, precário. O
paradigma da felicidade como vontade de poder nem de longe esbarrava em limites
exteriores às possibilidades reveladas pela inteligência humana (limites dessa
própria capacidade de criar). As águas dos rios e dos mares não estavam
contaminadas pelo óleo, o sabão, os detritos industriais e o lixo produzido
pelos humanos, insensatos, ainda que exibindo e confiando em sua elite feliz e
inteligente.
Certo, mas Nietzsche reencarnado não poderia estar na
liberdade para criar uma solução de continuidade ao impasse do modo de vida
fabril-eletrônico? O alemão bigodudo não teria o cerne de seu pensamento, seu
ethos, posto exatamente na crítica à moralina(moralinfrei),
palavra inventada por esse maluco punk do século XIX, para combater o dever ser em geral:
“Chamo
um animal, uma espécie, um indivíduo de corrompidos quando eles perdem os seus
instintos, quando escolhem, quando preferem
o que lhes é prejudicial. Uma história dos “sentimentos superiores”, dos
“ideais da humanidade” – e é possível que eu tenha de narrá-la – também seria
quase a explicação de por que o homem
está tão corrompido. Considero a própria
vida como instinto de crescimento, de duração, de acumulação de forças, como
instinto para o poder: onde falta a
vontade de poder, ocorre declínio. Minha tese é a de que todos os valores
supremos da humanidade carecem dessa
vontade – que sob os nomes mais sagrados há valores de declínio, valores niilistas no comando.” (pg.18)
Quem tem medo de Marina Silva? Certamente não os que se
ocupam com as misturas obtidas por qualquer uma das duas frentes em disputa
(esquecendo o homem e focando apenas nas mulherzinhas aptas ao segundo turno
das eleições presidenciais), engendramentos utilitaristas entre defensores das
privatizações e do fortalecimento do Estado nacional. Todos sabemos que não há
meios democráticos de enfrentar o controle que o Capital estabelece nas
dinâmicas da macroeconomia, porque esse controle se dá mediante a violência das
guerras fiscais e financeiras globalizadas. Sabemos que o desejo de lucro,
associado ao abandono dos trabalhadores subalternos só arrefece diante de
riscos consolidados de desarranjo geral por meio da revolta dos oprimidos. E
sabemos que essa revolta só consegue acontecer no limite do risco de perda de
sentido na sobrevivência dentro de parâmetros escravizadores do sujeito comum.
Não vamos aqui analisar o quanto o bloco no poder abusou da violência legal e extrajurídica para
conter os insurgentes de junho de 2013, no Brasil; vamos ensaiar uma reflexão
sobre os limites daquela revolta. A tese é, usando Nietzsche naquilo que ele me
oferece, de que os limites dos movimentos de revolta brasileiros têm estado na
inclusão das crenças dos rebeldes dentro dos parâmetros da racionalidade
ocidental moderna, aquela mesma combatida pelo alemão bigodudo, aquela
racionalidade do dever ser em geral,
dos direitos de todos, da liberdade de cada um, dos regulamentos e gerenciamentos
da vida baseada nos ideais das declarações dos direitos iguais e das liberdades
de ser, pensar e estar.
O medo “tamanho” não é das fragilidades conceituais da
candidatura Marina, ao contrário, é um medo da potência insurgente que as
práticas fundamentalistas cristãs têm inaugurado neste país sincrético e
polimórfico. Veja bem, quem não identifica semelhanças nas performances dos
grandes shows de rock pesado e punk, onde os indivíduos deixam de existir para
naufragar em um mar catártico de paixões coletivas irracionais, com as
performances dos cultos pentecostais híbridos, perfeitamente xamãnicos, de
pequenas multidões alucinando seus terrores ocultos? Por que, perguntaria
Nietzsche, os kuarups dos indígenas não aculturados são considerados belos, as
festas de dia inteiro dos grupos de jovens em haves de música eletrônica regada
a ácidos energéticos são consideradas perfeitamente normais, e os cultos
pentecostais são aterrorizantes do sujeito racional padronizado pela mídia e a
intelectualidade no poder? Simples, porque os cultos pentecostais estão na
margem de uma nova abertura de potência irruptiva e desconstrutiva da
racionalidade moderna, aquela do dever em geral Kantiano (segundo o alemão
brabo). É, portanto, “a sensação de que o poder cresce”, revelada no fenômeno
do novo fundamentalismo cristão, que tanto assusta os “moralinos defensores da décadence”, como diria meu amante alemão
do réveillon de 2001.
Eu diria que os modernos não deveriam se assustar com Marina
Silva, ao contrário, deveriam ver em sua candidatura uma possibilidade de dar
vazão controlada às inquietações evangélicas, de rearranjar de um modo
organizado e intelectual as linhas de força dentro desse campo insubordinado e
pagão da subjetividade coletiva. Marina seria, pasmem,
uma chance de adestrar fluxos de revoltas fundamentalistas cristãs para
objetivos de “governabilidade”, sim, em escala espaço/tempo diferente mas da
mesma série dos que adestraram e apagaram a memória de um contingente enorme de
militantes petistas por ocasião da ascensão de Luis Inácio ao poder. Mas não é
esse o meu interesse e simpatia com relação à candidatura Marina Silva. O que
me move é a crítica aos limites evidentes do secular “voto nulo” anarquista de
tradição. Ora, se sabemos que as elites da espécie humana nos últimos milênios
estiveram sempre organizando as guerras e a concentração de poder, se estamos
carecas de saber que essa estrutura da posse de renda se deu na esteira da crença na
capacidade de invenção que os humanos têm, de suas artimanhas e geringonças
fabris e tecnológicas, e se, por fim, está claro para todos que o Capitalismo
Senil tem vida própria dentro dos engendramentos sempre bélicos, em última
instância, da sucessão de dinastias gerenciais, a alternativa de uso do voto como arma (e
não mais como manifestação pacífica de opinião) para reduzir a estabilidade das
estruturas de poder não seria uma novidade a inaugurar um novo tipo de
anarquismo, ou um neo-anarquismo retomando,com potência, a ideia de que “se há
governo, sou contra”? Um neo anarquismo da era das estatísticas e das pesquisas
de opinião, com erros de cinco pontos para mais ou para menos, as grandes
mídias a conduzirem uma eleição orquestrada pela virtual inexistência de um “segundo
turno”, ou seja, as candidaturas pequenas não participam objetivamente da
eleição, não aparecem, não tem visibilidade e nem são pensadas como algo
factível, vindo a ser, olha só!, o que há de mais fundamentalista em todo o
processo ilusoriamente democrático? Sim, irmãos, os pequenos herdeiros do
bolchevismo mais puro e sincero e o eterno mesmíssimo voto nulo do anarquismo
de tradição compõem a parte mais íntegra do processo eleitoral baseado nas
premissas da Era Moderna, ainda que essa Era pareça um acontecimento do
passado, dos séculos que inauguraram o Iluminismo
até o instante do surgimento do vírus HIV, do medo dos chineses, dos furacões e
das extinções de espécies animais não humanas, revelando um Planeta pequeno
demais para essa espécie humana fabril. Não obstante, são completamente
obscuros, ausentes de qualquer coisa em disputa e, por isso mesmo, dizem o que
querem. E quem realmente concorre, diz o que precisa dizer para vencer. Ninguém
diz a verdade sobre a realidade previsível ou provável do país e seus
habitantes subalternos porque o acontecimento eleitoral é virtual, televisivo,
midiático, dionisíaco, alucinadamente falso.
Nesse quadro, a
retirada da estabilidade dos gerentes no poder com a sucessiva escolha do “partido
outro”, da “frente outra”, seja ela quem for, anulando as sucessões formadoras
de dinastias justificaria a força eleitoral de Marina Silva, afinal ela não
está enquadrada na dinâmica PSDB versus PT do pós ditadura militar e seria,
portanto, o “outro” do que vimos e vivemos desde Fernando Collor e os primeiros
ataques do pós queda do muro de Berlim e da fragmentação da União Soviética, no
mundo e no Brasil, do fundamentalismo liberal em um quadro geral de senilidade
do tal “mercado”, o grande deus absoluto dos discursos racionais do século XXI.
Não tenho a menor ideia de quem hoje em dia poderia estar carregando
fluxos dos espíritos que ocuparam Friedrich
Wilhelm Nietzsche no final do século XIX,
mas desconfio que não sejam os eleitores que carregam o medo de ser feliz da tradição petista, medo próprio de uma
socialdemocracia impostora em um país estruturalmente escravista nos modos de
trabalhar, sentir e trocar afetos. Eu, por meu lado, carrego a vontade de
poder, a potência do desejo e o desprezo pela moralina moderna.
Eu voto em Marina
Silva sentindo-me, como ela, uma super-mulher, o que já é uma enorme e
inusitada novidade nietzschiana: o
desejo irreverente de ver as super-mulheres derrotando o mundo fabril dos
super-homens modernos e seus deveres ser,
sempre tão limitadores do direito de ir e vir e da liberdade de manifestação e
expressão dos animais, humanos e não humanos, comuns.
(versão um, sem revisão e direto de um cérebro febril)
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