A tese abaixo foi aprovada no 17º CONAMAT - Congresso Nacional da Magistratura do Trabalho, ocorrido há alguns meses atrás. Trago para o blog, noticiando o início de um projeto de oficinas para tratamento de arquivos e formação de Acervo Histórico no Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina. A foto é do Ivam Martins
EMENTA:
MEMÓRIA HISTÓRICA COLETIVA. DIREITO INDIVIDUAL DO CIDADÃO DE IDENTIDADE
PRESENTE NAS NARRATIVAS DA HISTÓRIA NACIONAL. RECONHECIMENTO PELOS CONSELHO
SUPERIOR DA JUSTIÇA DO TRABALHO E TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO DA SELEÇÃO
LOCAL E REGIONAL COMO ACERVO PERMANENTE. UNESCO E AS DIVERSIDADES REGIONAIS NÃO
CONTEMPLADAS. UNIFICAÇÃO DO CRITÉRIO DE TOMBAMENTO PARA TODAS AS REGIÕES. A
EXPERIÊNCIA DA COLEÇÃO "MALHAS DA JUSTIÇA" DA VARA DO TRABALHO DE
IMBITUBA.
RESUMO: O
Brasil é um país de tradição escravista onde o exercício do direito à memória
histórica é vedado à maioria da população; a preservação da memória coletiva
dentro de uma ética ligada a história da produção de normas republicanas e
democráticas exige a retomada da reflexão sobre o princípio da tutela na
história da Justiça do Trabalho e os modos de preservação dos processos
judiciais; a fase de arquivamento e catalogação dos processos é, nesse sentido,
tão importante para os hipossuficientes quanto as fases de julgamento e
execução; não só é possível como é urgente a formação de pequenos acervos
históricos locais em cada município, utilizando de uma fração mínima do total
do esforço dos servidores de cada Vara do Trabalho e sem alteração do orçamento
total já previsto.
TESE
A memória coletiva de
um país (nação em um território dotado de soberania agrupando diversidades
administrativas, comunitárias e culturais) vai sendo construída pela
consistência dos registros históricos preservados, seja nas tradições orais, ou
escritas, ou fixadas em nichos culturais em meios diferentes, tais como
imagens, urbanismo, músicas, comidas, lendas locais, etc. Parte significativa é
estruturada por acumulação multiforme de memórias derivadas de registros
arquetípicos que vão alicerçando configurações na psique coletiva a partir de experiências traumáticas das
comunidades, como revoluções, guerras e genocídios. Outra parte não menos
importante depende das estratégias e éticas adotadas pelas gerências das
estruturas da sociedade no ordenamento e seleção dos registros produzidos. O
Brasil é, segundo renomados e clássicos pensadores e pesquisadores, um país de
memória forte na tradição escravista e nas resistências possíveis ao padrão,
sejam elas resistências populares ou de parcela da elite republicana,
antiescravista e abolicionista. Dentro disso podemos encontrar, grosso modo,
dois tipos de memória coletiva: as das elites, geralmente suntuosas, altamente
visíveis e fundadas em gastos significativos para serem mantidas, e as memórias
coletivas dos subalternos, sempre construídas nos rastros fortes deixados pelas
resistências à exploração econômica e à violência moral. Na história da
humanidade, a preservação da memória enfrenta o desafio que evolui da perda de
registros por fragilidade ou por excesso, este último se realizando na
modernidade em sua fase de alta tecnologia. A construção de projetos de
preservação da memória dos subalternos – já que as elites se ocupam
galhardamente da sua própria historiografia – não depende de investimentos
econômicos elevados. Faz parte da injustiça social a retirada do direito à memória histórica para a
maioria dos seres humanos, ao serem caracterizados como pessoas não
importantes, mesmo em situações políticas onde o sujeito operário é um
referencial de valor positivo. Isto é, ainda quando se quer narrar a história
dos desimportantes, em sociedades de tradição escravista ou totalitária, a
elite se outorga o direito de contar essa história de um modo mitificado. A
memória dos subalternos, dos desimportantes, depende apenas de estímulos à formação
de pequenos acervos locais, em municípios e em bairros, protegidos dentro da
estrutura pública da União, estados e municípios. Inserir uma fração pequena de
atividades de proteção de acervos históricos localizados nas instituições
públicas, formados a partir da intenção de proteger as memórias dos subalternos
e dos socialmente desimportantes no espectro da hierarquia de celebridades e
fama, no cenário dos discursos públicos e publicados, é uma atitude de tutela
da força e solidez das instituições democráticas e republicanas fundadas na era
moderna. Em outro sentido, e na esteira do pensamento de Giorgio Agamben, a
ruptura com a solidez das instituições dos estados nacionais e,
consequentemente, com as tradições republicanas e democráticas, tende a fortalecer
a retomada de perspectivas “faraônicas” para a preservação de memórias
privilegiadas neste mundo em declínio, ou seja, tende ao fortalecimentos de
memórias coletivas construídas por tiranias sem nacionalidade definida e
estruturadas com uma concentração de renda reveladora da miséria e do
esquecimento da maioria dos seres vivos, humanos ou não humanos. Não é possível
guardar toneladas, dezenas de milhões de processos, considerando todos os
tribunais do país, para preservação da memória dos cidadãos brasileiros, das
comunidades, dos municípios, das cidades grandes, das empresas, das etnias, das
diferentes faixas etárias e gerações, das tribos,
e dos agrupamentos culturais e religiosos diferentes. Não há como equacionar a
questão dos orçamentos e responder adequadamente ao tema das urgências
reclamadas pela população, inclusive nas últimas manifestações de junho de
2013, e ainda separar dinheiro para investir em arquivos onerosos abrigados em
gigantescos galpões, entre 1932, início dos registros mais antigos sobre a
criação da Justiça do Trabalho, e 2014, espalhados por todos os estados
brasileiros. Até mesmo porque, ainda que
sejam solucionados os problemas da implantação inicial do processo virtual,
esse meio também não garante a preservação de uma memória sistematizada, pois
uma informação só pode ser localizada se for catalogada em arquivos bem
ordenados e isso implica em um projeto de memória para os arquivos em meio
eletrônico. A questão prática já nos encaminharia imediatamente para a formação
de pequenas coleções de processos judiciais trabalhistas para preservação de
memória. Mas, se quiséssemos refletir sobre a importância do tema e as questões
de método derivadas, encontraríamos as ideias de grandes filósofos e
historiadores (Elisabeth Roudinesco, Jacques Derrida entre outros) a nos
ensinar que não há preservação da memória sem seleção de dados, nem para um
indivíduo e nem para uma sociedade inteira. Se guardássemos tudo o que uma
sociedade produz de registros não teríamos uma escrita sobre sua história,
teríamos uma espécie de “lixão”, a desordem e mistura desmanchando todos os
significados. Os registros deixados pela vida cotidiana são mudos, isto é, eles
não expõem interpretações. Sempre uma parte significativa da documentação
produzida não será contemplada pelos registros mais pregnantes (a pregnância de
um registro ou forma é a força que ele tem de se tornar visível e ocupar a
maioria dos espaços disponíveis. Exemplo: o uso da calça jeans). Sempre haverá
uma escolha ética na construção de narrativas para preservação de memória tanto
individual quanto coletiva. A retirada de uma sociedade de seu ordenamento de
tradição escravista, uma pequena elite determinando significados para uma
grande maioria de pessoas conduzidas à falta de autoestima e à ausência de
direito à inclusão na memória social, não poderá ser feita de um golpe só e
depende de estímulos progressivos. A capacidade de uma comunidade realizar
narrativas sobre si própria pode ser incentivada por pequenas atitudes sem
custo algum. Os processos judiciais trabalhistas podem ser objeto de seleções e
ordenamentos de catálogos que estimulem as comunidades locais a escolher e
organizar a sua própria memória. A memória coletiva não é uma verdade que possa
ser encontrada por uma inteligência artificial ou humana construída no futuro,
ou seja, como se pudéssemos guardar imensos arquivos para que um Eu superior em
séculos vindouros viesse a enunciar a verdade sobre o tempo em que vivemos, a
História da Humanidade não é progressiva em direção a uma verdade maior ou a
seres mais inteligentes. O passado não pode ser descrito mais eficientemente
por um futuro, ao contrário, o futuro sempre lê o passado a semelhança dos
impulsos do seu presente. A memória de uma comunidade só sobrevive se ela mesma
falar e escrever sobre si. Partindo
dessa reflexão, trabalhamos para construir a coleção “Malhas de Justiça” na
Vara de Imbituba, em Santa Catarina, Brasil. Há uma tradição local, sob risco
de extinção, que é a pesca artesanal das costas, nas quais pescadores antigos,
muitos descendentes de indígenas e colonos de origem açoriana, fazem arrastões
em pequenos barcos com redes tecidas por eles. É a pesca da tainha e da
anchova. Os peixes chegam em cardumes enormes e as malhas capturam uma parte
para armazenar alimento destinado ao consumo no inverno. O nome “malhas de
justiça” tem a intenção de reter o significado de ação conjunta e local para
guardar memória a partir dos processos judiciais. No caso da coleção de
Imbituba, 0 projeto partiu da premissa objetivo
gasto zero, ou seja, sem orçamento. Não seria possível, portanto, organizar
reuniões da sociedade local, em bairros e por setores e agenciar escolhas em
cascata, do tipo uma primeira seleção por bairro, uma segunda com assembleias
por temas e assim por diante até obtermos uma coleção local passível de ser
administrada com recursos locais. Partimos então para o possível: orientar os
servidores para selecionarem processos no momento mesmo em que eles eram
manuseados em cada ilha de trabalho. Quando o servidor desenvolve um
procedimento, ele apreende muitos relatos contidos dentro dos autos. Esses
detalhes não aparecerão na capa do processo e nem nos catálogos executados em
sua formalização. É nesse momento que o servidor pode reconhecer um
acontecimento revelador da história dos rastros mais frágeis das comunidades
locais no Brasil. Os rastros fortes são aqueles que ficam preservados pelas
tradições das elites locais ou nacionais. No caso da Justiça do Trabalho, os
rastros fortes são as decisões e jurisprudências dos tribunais, as doutrinas e
reflexões guardadas em publicações bem divulgadas, os processos considerados
importantes como os dissídios coletivos. Esses registros ficam bem guardados em
arquivos preservados de variadas formas. O que se perde regularmente são os
registros dos processos judiciais considerados menos importantes e que podem
ser os mais significativos para a história dos subalternos na comunidade local.
O relato de uma parte dos casos de Imbituba fornecerá exemplos esclarecedores.
Construímos então uma
coleção de aproximadamente duzentos processos que foram acondicionados em
caixas de plástico e guardados em cima de um armário na secretaria,
considerando que seria o lugar mais protegido, ventilado e higienizado, já que
é o lugar onde ficam os servidores no dia-a-dia. Essa atividade se desenvolveu
durante um ano, 2013, e ficaram selados processos desde 1989 até 2013, já que
os processos bem antigos em arquivo provisório tinham sido desarquivados para
prosseguimento da execução. Com a participação de todos os servidores e o apoio
de procuradores e juízes, foi possível identificar vários acontecimentos da
sociedade local, seja ligados às tradições regionais, seja ligados a
acontecimentos políticos de âmbito nacional.
É preciso abordar ainda
um problema: os arquivos judiciais têm sido relegados a um plano muito
secundário nas preocupações das secretarias das varas e das administrações
regionais. Os princípios elencados na lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999
(legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade,
moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público
e eficiência) dos quais emerge o mais pregnante deles, o princípio da
celeridade, foram interpretados nas Varas do Trabalho no país inteiro de forma a
tornam a atividades de julgamento e execução muito mais relevantes do que as
atividades preparatórias ou subsequentes a esses dois momentos da prestação
jurisdicional. Precisamos refletir dedicadamente sobre isso. O interesse
público, a finalidade, a moralidade e a segurança jurídica em um país e dentro
de cada uma de suas comunidades depende da dignidade e autoestima transferida
para cada um dos cidadãos sujeitos de direito. Dentro dos valores que alimentam
os direitos individuais elencados está, e com centralidade, o direito à
memória.
Histórias de uma cidade
portuária no sul do Brasil - Exemplos de rastros preservados:
gaúchos proprietários de fábrica de calçados que retornaram para seu estado e
seu município – Sapiranga - e deixaram dívidas trabalhista em Santa Catarina;
Geralda tem doze filhos e se declara negra na inicial, morreu de AVC no meio do
processo, o reclamado diz que seu bar era de quinta categoria; greve de
servidores em 1993; trabalhadora rural é irmã do reclamado e diz ter trabalhado
em regime de escravidão, o juiz decide procedente e informa ao MT, a execução
não é finalizada por falta de bens; um empresário presente em vários processos
desde 1992, dono de empresas diversas ao longo do tempo, desde a
construção do porto até empresas de porte significativo da região, revelando
trajetória política muito influente; a complexidade das posses de terrenos na
região das praias, com várias irregularidades que inviabilizam os leilões
revelando a história da ocupação do litoral brasileiro; domador de cavalos,
camareira, holandês, argentino, uruguaio, pescador, garoto de convés e tantas
outras profissões e nacionalidades declaradas pelos autores, que se fossem
listadas em um catálogo por si só revelariam a diversidade das populações
brasileiras e as particularidades de cada região; as assinaturas dos
analfabetos e as dos servidores, procuradores e juízes (história das
assinaturas), que se fossem ordenadas em séries (como legos) mostrariam a
enorme presença do analfabetismo na parte dos reclamantes em um processo
(recolocando o debate sobre a importância do princípio da tutela na história da
JT); empresas carboníferas, de cerâmica;
execuções inconclusas por terem se
tornado pobres os executados aposentados em processos antigos e desarquivados
para Bacen; leilão de televisão comum e vídeo por serem bens suntuosos, em
processos antigos; falência de indústria de costura – articulada com a
indústria dos calçados do RGS, devido à crise financeira em 1995; bacen realiza
em 2013 uma execução parada em 1996; toda a complexa história dos portuários
brasileiros, com registros épicos em vários processos, sugerindo tradições
(inclusive indígenas) de uma geração para outra; acusações de perseguição e
agressões físicas de servidores municipais; depoimentos de tripulantes de
navios e barcos de pesca; reclamantes portuários associados ao sindicato desde
1977; histórias de trabalho de menor; morte de reclamante na sala de
audiências; mandado de prisão ao gerente do banco; paralisação dos juízes;
pousada internacional com relatos de briga em família dentro da pousada;
surgimento do tabelião concursado; terceirização em fases diferentes; autor
analfabeto e réu artista plástico em bairro de alta elite em SP; laudos
psiquiátricos revelando conceitos controversos em psiquiatria não contestados
por laudo complementar da parte; autor operário de cerâmica atingido por um
tiro em manifestação de sindicalistas; história da implantação do bacen e da
mudança das dinâmicas na execução; autor tetraplégico com depoimento tomado no
pátio, dentro da ambulância; preconceito em razão de cabelos crespos com dano
moral; pescador pede pensão vitalícia depois de acidente no barco; morte de
pedreiro em construção de hotel; operários em empresas de reflorestamento; ré
invade a casa de cozinheira em restaurante para procurar um celular; primeiro
acidente grave na construção da ponte de Laguna, na BR 101 (história da
construção de estradas no Brasil); morreu em acidente de trânsito com 32 anos e
deixou 3 filhos com 3 mulheres diferentes; testemunha descreve ser garota de
programa; reclamante é surfista e foi preso e acusado de tráfico de drogas;
ação civil pública do MPT contra Docas – precarização nos contratos, assédio
moral, coação. E muitos outros registros de importância vital para o entendimento
da história da ocupação da mata atlântica no Brasil.
Texto
elaborado por DINAH LEMOS, historiadora e servidora da Vara de Imbituba.
Assinam
o texto a juíza e o juiz:
Ângela
Maria Konrath e Daniel Natividade Rodrigues de Oliveira
Responsável
pela defesa: Ângela Maria Konrath
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