No livro Força de Lei, Derrida diz que fala em inglês (no colóquio que deu origem ao livro) porque está em uma situação que quer ser entendido por quem o ouve (Nova York), porque será mais perfeito – justo no sentido de justeza – para relacionar o que é pensado por ele e o que será ouvido pela sua audiência e porque será mais justo no sentido de justiça, e ele diz um sentido jurídico-ético-político, porque dever-se-ia falar na língua da maioria, quando se é um estrangeiro. E isso seria tanto uma lei derivada da polidez, ou uma lei do mais forte, ou a lei da democracia e suas determinações.
Mas, ainda seguindo o texto de
D., nesse ponto aparece a expressão “to
enforce the law”, que na tradução aparece como “aplicar a lei”, mas no
original carrega a ideia de força
justificada ou força autorizada. E aí, a frase com a qual vamos interromper
a leitura desta aula dois:
“A aplicabilidade, a ‘enforceability’ não é uma
possibilidade exterior ou secundária que viria ou não juntar-se, de modo
suplementar, ao direito. Ela é a força essencialmente implicada no próprio
conceito da justiça enquanto direito,
da justiça na medida em que ela se torna lei, da lei enquanto direito”. (8,
2007, Martins Fontes)
Vamos simplificar o nosso
problema, nessa primeira aproximação, dizendo: a aplicabilidade do olhar do
jurista, ou o direito que ele tem de ter seu olhar, está produzida no interior
da cultura, ou seja, o jurista pode e deve dizer como o mundo deve ser
interpretado. Por outro lado, a aplicabilidade do olhar do historiador,
portanto o direito que ele tem de ter seu olhar, também está produzida no
interior da cultura e é ele quem pode dizer como o passado se desenvolve até formar significados úteis ao presente.
Há, portanto, nos dois – o
jurista e o historiador – uma força
autorizada no interior da linguagem: só o historiador[1]
pode fazer o passado chegar até uma descrição do presente, e só o jurista pode dizer
como esse presente deve ser. Decorre daí a estética geral que percebemos nos
juristas e nos historiadores. Os primeiros tendem a ser esquivos com relação à
política, pois eles não têm a linguagem para descrever o caos, e sim a que pode
(e deve) ordená-lo, quando falam em política o fazem de um modo menos
tranquilo, ou muito autoritário, ou irônico e brincalhão, menos justo (em
qualquer sentido, de justeza ou de justiça); os juristas escrevem tratados,
teses, conferências e pronunciam julgamentos, quando estão em situação de
prestação jurisdicional (quando estão na condição de juízes) e o fazem
predominantemente com uma postura discreta e branda, pois a força já está
presente na sua linguagem e não deve se manifestar em algum tipo de ênfase
estética, já que a força na estética é atribuição dos militares, dos pais de
família, dos políticos. Os segundos, nossos videntes autorizados, adotam um
comportamento meticuloso e ambíguo: afirmam sobre o passado, necessariamente
com uma profusão de marcas, sinais (datas, provas) e registram que o presente
não é apreensível e não pertence a ninguém, como se entregassem o dever de
linguagem sobre o presente aos políticos.
Podemos e iremos examinar os
comportamentos, as estéticas e as éticas de juristas e historiadores, com
dedicação, mas já em um primeiro momento – e esse é o objetivo de nossa segunda
aula – intuímos que entre os dois, juristas e historiadores pende o risco
de um específico ‘conflito de
competência’ que é muito bem contornado por um acordo tácito impresso como
memória forte na tradição: os historiadores não deveriam jamais falar sobre os
processos organizados dentro do sistema judiciário e os juristas jamais devem
considerar o conteúdo dos processos para além das determinações consolidadas na
doutrina e jurisprudências de sua área de conhecimento. Os juristas são cegos
para o real cotidiano da vida dos atores dentro de um processo e os
historiadores são cegos para as relações de dever ser dentro desse mesmo
processo e carregam, na textura conceitual de suas análises uma determinada
ignorância que se esconde em metodologias associadas, como a ideia de ‘luta de
classes’ para os marxistas, ou a ideia de ‘continuum heteregeneo’ para os
weberianos, ou as noções de ‘corpo social’ dos funcionalistas. Não acontece uma
tradução entre as linguagens dos juristas e a dos historiadores.
Há juristas que se propõem como cientistas sociais, ocupando o espaço de direito dos historiadores. Vamos citar dois emblemáticos (para nós) entre eles: Raymundo Faoro e Giorgio Agamben.
Mas, nesse momento, o jurista acaba ocupando o lugar do historiador e afastando-se do espaço de existência do processo judicial. Este último é e sempre foi um lugar de higiênica atitude cirúrgica apenas existente na linguagem técnica jurídica e sem permissão para traduções. Poderíamos adentrar no específico território da antropologia e investigar o ‘processo judicial’ como um espaço do sagrado jurídico, aquele altar no qual somente os sacerdotes podem realizar enunciações. Claro, estaríamos até certo ponto invadindo uma emaranhada reflexão onde encontraríamos também o médico cirurgião em sua “sala de rituais” de entrada proibida, na qual a vida do ser humano fica totalmente entregue em suas mãos.
Há juristas que se propõem como cientistas sociais, ocupando o espaço de direito dos historiadores. Vamos citar dois emblemáticos (para nós) entre eles: Raymundo Faoro e Giorgio Agamben.
Mas, nesse momento, o jurista acaba ocupando o lugar do historiador e afastando-se do espaço de existência do processo judicial. Este último é e sempre foi um lugar de higiênica atitude cirúrgica apenas existente na linguagem técnica jurídica e sem permissão para traduções. Poderíamos adentrar no específico território da antropologia e investigar o ‘processo judicial’ como um espaço do sagrado jurídico, aquele altar no qual somente os sacerdotes podem realizar enunciações. Claro, estaríamos até certo ponto invadindo uma emaranhada reflexão onde encontraríamos também o médico cirurgião em sua “sala de rituais” de entrada proibida, na qual a vida do ser humano fica totalmente entregue em suas mãos.
Estudamos Derrida para entender
como e porque os processos judiciais são um lugar minado de tabus.
[1]
O lugar do historiador é disputado por áreas afins, como a antropologia, a
sociologia e outras matérias que aparecem como faculdades nas divisões modernas
do conhecimento. Mas o lugar é o mesmo: vamos chama-lo de ‘historiador’ e mais
tarde veremos as diferenças mais discretas entre os focos das chamadas ‘ciências
sociais’.
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