O jurista e o historiador - estudando Derrida - aula dois





No livro Força de Lei, Derrida diz que fala em inglês (no colóquio que deu origem ao livro) porque está em uma situação que quer ser entendido por quem o ouve (Nova York), porque será mais perfeito – justo no sentido de justeza – para relacionar o que é pensado por ele e o que será ouvido pela sua audiência e porque será mais justo no sentido de justiça, e ele diz um sentido jurídico-ético-político, porque dever-se-ia falar na língua da maioria, quando se é um estrangeiro. E isso seria tanto uma lei derivada da polidez, ou uma lei do mais forte, ou a lei da democracia e suas determinações.

Quando leio esse parágrafo, fico pensando em como um historiador deveria falar com um jurista. Vamos definir o que é um jurista e o que é um historiador, de um modo apressado e inicial: o jurista vê um mundo em conflito, ou melhor, um conflito dentro de um mundo que deveria ser totalmente ordenado. Ele detém o conhecimento sobre como as regras devem funcionar e detém o poder (veremos mais tarde, em Derrida) de interpretar a lógica dessas regras entre si e com o objeto do conflito que ele, jurista analisa. O olhar do jurista é ordenador e guarda esse poder e, mais que isso, esse direito. O jurista tem o poder e o direito, socialmente conferido a ele, de dizer como a realidade deve ser corrigida para que se mostre como deve ser. O historiador vê um mundo que segue em um ou vários sentidos em direção ao futuro. Ele tem o direito (e vamos ver mais tarde como esse direito é restrito a uma minoria, nas sociedades comandadas por elites) e deseja ter o poder de entender como esses sentidos se relacionam e como, em hipótese, poderia se formar um sentindo predominante em direção a um futuro a partir daí identificável. Vamos estudar e refletir bastante sobre essa possibilidade de ser do historiador (sobre a qual os profissionais da área fingem desconhecimento pois afirmam falar só sobre o que é provado e comprovável): um vidente com o poder de se fazer entender pela linguagem da maioria. São duas linguagens distintas e não há uma comunicação direta entre elas, assim como há em uma simples tradução de linguagens tal como conhecemos e a que Derrida se refere no ponto em que estamos do livro.

Mas, ainda seguindo o texto de D., nesse ponto aparece a expressão “to enforce the law”, que na tradução aparece como “aplicar a lei”, mas no original carrega a ideia de força justificada ou força autorizada. E aí, a frase com a qual vamos interromper a leitura desta aula dois:

“A aplicabilidade, a ‘enforceability’ não é uma possibilidade exterior ou secundária que viria ou não juntar-se, de modo suplementar, ao direito. Ela é a força essencialmente implicada no próprio conceito da justiça enquanto direito, da justiça na medida em que ela se torna lei, da lei enquanto direito”. (8, 2007, Martins Fontes)

Vamos simplificar o nosso problema, nessa primeira aproximação, dizendo: a aplicabilidade do olhar do jurista, ou o direito que ele tem de ter seu olhar, está produzida no interior da cultura, ou seja, o jurista pode e deve dizer como o mundo deve ser interpretado. Por outro lado, a aplicabilidade do olhar do historiador, portanto o direito que ele tem de ter seu olhar, também está produzida no interior da cultura e é ele quem pode dizer como o passado se desenvolve até formar significados úteis ao presente.

Há, portanto, nos dois – o jurista e o historiador – uma força autorizada no interior da linguagem: só o historiador[1] pode fazer o passado chegar até uma descrição do presente, e só o jurista pode dizer como esse presente deve ser. Decorre daí a estética geral que percebemos nos juristas e nos historiadores. Os primeiros tendem a ser esquivos com relação à política, pois eles não têm a linguagem para descrever o caos, e sim a que pode (e deve) ordená-lo, quando falam em política o fazem de um modo menos tranquilo, ou muito autoritário, ou irônico e brincalhão, menos justo (em qualquer sentido, de justeza ou de justiça); os juristas escrevem tratados, teses, conferências e pronunciam julgamentos, quando estão em situação de prestação jurisdicional (quando estão na condição de juízes) e o fazem predominantemente com uma postura discreta e branda, pois a força já está presente na sua linguagem e não deve se manifestar em algum tipo de ênfase estética, já que a força na estética é atribuição dos militares, dos pais de família, dos políticos. Os segundos, nossos videntes autorizados, adotam um comportamento meticuloso e ambíguo: afirmam sobre o passado, necessariamente com uma profusão de marcas, sinais (datas, provas) e registram que o presente não é apreensível e não pertence a ninguém, como se entregassem o dever de linguagem sobre o presente aos políticos.

Podemos e iremos examinar os comportamentos, as estéticas e as éticas de juristas e historiadores, com dedicação, mas já em um primeiro momento – e esse é o objetivo de nossa segunda aula – intuímos que entre os dois, juristas e historiadores pende o risco de  um específico ‘conflito de competência’ que é muito bem contornado por um acordo tácito impresso como memória forte na tradição: os historiadores não deveriam jamais falar sobre os processos organizados dentro do sistema judiciário e os juristas jamais devem considerar o conteúdo dos processos para além das determinações consolidadas na doutrina e jurisprudências de sua área de conhecimento. Os juristas são cegos para o real cotidiano da vida dos atores dentro de um processo e os historiadores são cegos para as relações de dever ser dentro desse mesmo processo e carregam, na textura conceitual de suas análises uma determinada ignorância que se esconde em metodologias associadas, como a ideia de ‘luta de classes’ para os marxistas, ou a ideia de ‘continuum heteregeneo’ para os weberianos, ou as noções de ‘corpo social’ dos funcionalistas. Não acontece uma tradução entre as linguagens dos juristas e a dos historiadores.

Há juristas que se propõem como cientistas sociais, ocupando o espaço de direito dos historiadores. Vamos citar dois emblemáticos (para nós) entre eles: Raymundo Faoro e Giorgio Agamben.

 Mas, nesse momento, o jurista acaba ocupando o lugar do historiador e afastando-se do espaço de existência do processo judicial.  Este último é e sempre foi um lugar de higiênica atitude cirúrgica apenas existente na linguagem técnica jurídica e sem permissão para traduções. Poderíamos adentrar no específico território da antropologia e investigar o ‘processo judicial’ como um espaço do sagrado jurídico, aquele altar no qual somente os sacerdotes podem realizar enunciações. Claro, estaríamos até certo ponto invadindo uma emaranhada reflexão onde encontraríamos também o médico cirurgião em sua “sala de rituais” de entrada proibida, na qual a vida do ser humano fica totalmente entregue em suas mãos.

Estudamos Derrida para entender como e porque os processos judiciais são um lugar minado de tabus.





[1] O lugar do historiador é disputado por áreas afins, como a antropologia, a sociologia e outras matérias que aparecem como faculdades nas divisões modernas do conhecimento. Mas o lugar é o mesmo: vamos chama-lo de ‘historiador’ e mais tarde veremos as diferenças mais discretas entre os focos das chamadas ‘ciências sociais’.

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