Cinquenta tons de vermelho




A casa estava silenciosa. Ela aproveitava para arrumar  arquivos naquele notebook já antigo.  Rever e repensar tudo o que foi guardado era uma tarefa fundamental, sem a qual não se poderia erguer uma forte memória pessoal, útil a pesquisas mais qualificadas no futuro (o que mais importava era o que fosse preservado como rastro, como prova). Acordara sonhando estar escrevendo uma carta para o diretor associado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, São Paulo, Brasil. Por que tinha aquele desejo/sonho em estabelecer um contato milagroso com pessoas influentes?  De onde vinha aquela sensação de que poderosos podem ser convencidos a serem bons e generosos por uma "Sherazade" qualquer? Sonhando com aquele encontro, mágico e decisivo, foi pesquisar, no Google e em páginas de academias consagradas, sobre o tema "arquivo pessoal".  Encontrou diversos textos em uma conceituada revista acadêmica. Acordando, de súbito, para a realidade nua e crua, achara todos aqueles conteúdos muito falsos e improfícuos. Tinha essa ânsia em conquistar uma pessoa inscrita nos círculos do poder e achá-la potencialmente lúcida, embora posicionada em situação antagônica aos pensadores excluídos, no jogo do Capital. Desde muito cedo tentara seduzir homens montados em armaduras do arquétipo do general do exército de ocupação. Ela era constituída em uma estrutura/sintoma, uma ex-prisioneira, outrora cooptada pelo torturador bonzinho, como se poderia ler no livro de Flávio Koutzi, "Pedaços de Morte no Coração", aquilo que fizeram com alguns dos presos políticos que conseguiram sobreviver à ditadura argentina, uma dissociação no centro de suas estruturas lógicas de ética: "eu caminho em uma corda bamba, entre dois julgamentos sobre a atitude de um dominador/ agenciador/ gerente/ comandante; isso me faz obter alguma genialidade, mas também me faz incomunicável, incoerente, esquizofrênica, isolada enfim". Ela não deveria esquecer nunca (embora estivesse sempre esquecendo, a todo momento):  não tinha que contatar com quem quer que seja no campo dos que ficaram no poder enquanto ela era conduzia progressivamente ao exílio, territorial e simbólico. Interessante era mesmo aquele seu amigo íntegro e exilado, no meio da cidade natal;  e exilado da sua maneira esquizoparticipativa. Ela adorava aquela definição do Deleuze & Guattari que diz ser o esquizofrênico uma vibração para fora, na borda das significações da cultura desta civilização que decaí e morre, no final do segundo milênio cristão.
                                        
                                                                             (versão dois : em análise, não divulgue)



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