Monólogos sobre o nadar



                        Era uma festa de juízes e juízas, com eles distribuídos em várias mesas de modos nada aleatórios. Diretores, assessores, chefes e seus respectivos maridos, esposas, noivos, namorados ou outra opção, inclusive, já que era todo mundo tão colorido, nos últimos tempos, em muitos lugares. Eis que aparece, no palco, um coral de treze pessoas, vestidas como loucas em pose absurda. Aplausos da festa divertida. Naquele cenário, eles eram seis mulheres, vestidas de ícones de moda de época, de um lado, um travesti alto e loiro portando um salto plataforma de trinta centímetros, no meio, e seis homens, vestidos como gaúchos da fronteira sul do Brasil, ou soldados de outra fronteira qualquer, no lado esquerdo de quem vê e direito de quem é. E tudo aconteceu assim: postura de mímicos, parados em estátuas. Luzes de palco. Aplausos protocolares. Os atores tossem e se coçam, atrapalhados, se acomodam, e dizem, de um modo anormal, todos juntos, intercalando solos de pequenas falas de uma, duas pessoas, ou um grupo determinado: “A humanidade viveu dez séculos sem manifestações teatrais, entre o final do Império Romano e o ressurgimento dessas práticas, na Idade Média. Então surgiu um teatro "vinculado ao ofício religioso", onde "o drama litúrgico não se distinguia da liturgia cristã". Procurando inspiração para escrever algo e concorrer a um prêmio, encontrei [essa palavra dita uma vez por uma mulher e outra vez por um homem, que se olham, disputando a autoria] esse recorte em O Texto no Teatro, Sábato Magaldi (2008). Na verdade, não estou preocupada (o) [outro casal diz a palavra, a mulher primeiro e o homem, só o “o”, em disputa de gênero] em escrever bem, [fala o travesti]. Ou em “sentir-me feliz comigo mesmo (a) [um homem e uma mulher] ao escrever o que me vem do fundo da alma [travesti]. Também não quero apenas ganhar um concurso de escritos para ter meu texto publicado em um livro, com direito a dar autógrafos [uma soprano canta esse predicado]. Talvez fosse pífio [diz o travesti, com uma risadinha]. O celular fez um barulhinho agora e já não corro mais para ver quem é, não penso mais que encontrarei alguma solução, para algo, em uma mensagem das redes sociais. Não sou tolo (a) [todos juntos, menos o travesti que duvida, olhando em volta]. Voltando [travesti]. Como conseguiram passar mil anos sem fazer teatro? Bom, isso deve ser na Europa. No Oriente os caras fazem teatro desde sempre, em religião, mesmo que chovam canivetes [as mulheres dizem, olhando para os homens] por lá. Como os descendentes foram fazer [travesti] teatro litúrgico, [travesti] depois de mil anos do fim de uma civilização? [duas mulheres, olhando para o traveco, em desafio] duas folhas, para contos, é o regulamento [homens e mulheres]. Bom, então: eu queria escrever um dos textos mais lindos do mundo [só as mulheres, olhando para o público com ar idílico], ganhar com ele um concurso [os homens], em 2015, no Brasil [traveco, com cara de comportado], ser publicado (a) [um homem e uma mulher, em disputa de gênero] e encantar o mundo, as pessoas que lessem [travesti, irônico]. Tornar-me “ah” [travesti], “a (o) [disputa de gênero] que escreveu aquilo”. Entraria para o seleto clã [travesti] de pessoas que realizaram algo que importa na vida. E se eu fizesse de conta que só estou participando e penso algo disso que já foi dito, em tudo o que já apareceu por aqui, aí, acolá? Tipo: o sucesso é inútil, todas as pessoas são importantes, todas as vidas são belas, e tal e tal? Escrevi essa coisinha bonita só porque me deu autoestima (todos), e mandei e aí está. Obrigada a todas e todos (mulheres). Somos normais? Somos bons (dois homens e duas mulheres)? Normalmente o normal não é bom (travesti, com tédio). Vai acabar o espaço e eu [travesti] dizendo o de sempre, nada. Como os caras conseguiram ficar mil anos sem escrever e fazer teatro? Como fazer para que desse mar de coisas escritas e divulgadas, nas redes, em livros, nas telas de televisão, em filmes, em teatros, atualmente, surja um conjunto de escrituras que faça sentidos para todo o mundo [cada um diz uma palavra até o todo mundo, onde todos dizem juntos]? Porque se muita gente escreve e lê alguma coisinha, não estaremos lendo todos, coisas significativas, juntos. Kkk [todos juntos]. Escrever e ler importaria se fosse um momento de comunicação. Não existe linguagem sem isso, porque a linguagem não é só um alfabeto, ela é uma constelação de fluxos de entendimento. E divulgar uma porcaria dessas que todo mundo lê, e gosta, tipo falar em tons, adiantaria [só mulheres]? Não [só homens]. Vai acabar o espaço e eu [travesti] não disse nada. Calma, veja bem [mulheres, consolando o travesti]: que transcorram mil anos, desse nosso mundo demente, mas alguém, um dia, dará à luz escrituras importantes para todos e entendidas por todo o mundo. Quais escrituras [travesti]? Vai terminar esse tempo e eu preciso dizer alguma coisa que preste [travesti, olhando para o público, desce do cenário do coral, vai para um solo na beira do palco. Olha, tímido e meigo].  O travesti se prepara, tímido, um minuto, dois, e as mulheres falam, juntas: um minuto! De um modo imperativo. O travesti, então, olha para o público e diz, tenso, “nada, nada, nada...”. Depois pensa e decide dizer: Nadar é bom! E espera aprovação, infantil e sorridente. O público ri, de um modo moderado e disperso. O travesti olha, vai se tornando irado de um modo bipolar, se impõe ao público e diz: “vocês vão repetir, até dizerem direito”. E o coral repete, primeiro só as mulheres, depois só os homens e, depois, todo o coral: direito!  Os juízes e as juízas e seus assessores e diretores, maridos, esposas, namorados e outros falam, de um modo desorganizado e estridente: Direito! E foi assim que tudo se realizou, no fim:
            O travesti se põe como um maestro e rege o público, contando “é um, é dois, é três” como um vocalista de banda de rock, e o público enuncia, em uníssono, de um modo retumbante: nadar é bom! Juntos, perfeitos, indefectíveis. Depois o travesti repete a cena, com mais intensidade e mais rapidamente, como maestro apaixonado, e a turma do público levanta, uns, outros não, fazem poses de ópera e dizem, muito rapidamente: Nadar é bom! Nadar é bom! Nadar é bom!
            Todos aplaudem, o coral e o público, gritam “brabo, bravo”, assobiam, e aplaudem muito tempo. O coral se retira e o público se põe a beber e a comer, ruidosamente.  E o travesti ergue então uma placa de The End, escrito com flores do campo, mostrando para quem vê. E eles ganharam o melhor prêmio do mundo. Daquele mundo.


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