Larga-mar e cassarinas

A maré vazante faz emergir um espelho, fina camada de dez centímetros de água tépida se estendendo em um percurso de um quilômetro de extensão em toda a pequena baía cercada de montanhas. Uma cortina de cassarinas, árvores altas e finas,  de frente para o mar, negras em um fundo azul neon iluminando o início de noite, às 20 horas, e essa camada de água prateada escura, quarenta metros antes da rebentação, ondulando em marolas longas e que se encontram em um vai-e-vem de extenso e desencontrado percurso, isso chamado pelos nativos de "larga-mar". Caminho nessa água vendo os pés navegarem pisando em um chão de areia dura e plana, desenhada em estrias paralelas ondulantes, ao lado uma da outra em uma distância de cinco centímetros. Há um "caminhar sobre as águas" neste meu momento, penso ao ver outros três vultos de mulher fazendo a mesma coisa que eu. Ao longe, mas bem perto da rebentação, três pequenos barcos de pescador estão iluminados enquanto seus homens descansam, comem e terminam seu dia esperando um amanhecer para seus arrastões de redes onde tudo o que estiver nadando cai: não é tempo de pesca dos grandes cardumes de tainha ainda, eles pegam qualquer arraia ou papa-terra que se atravessar em seu caminho. Caminho nas águas do larga-mar pensando em como posso deixar claro ao mundo a capacidade minha de falar em nome de Deus: até os ateus costumam proibir e desautorizar essa fala, quando dizem que Deus é uma invenção de quem não sabe nada sobre o que está falando, que a fé é um fingimento sobre coisas das quais você não sabe. Somando fileiras, outros tantos cultos e igrejas monoteístas afirmam ser essa palavra um nome com rígidos limites de significados: ele só pode ser dito ou pensado da maneira como está descrito em milenares livros sagrados.

No entanto, Deus é uma das poucas palavras que carrega, em primeiro lugar, a lei maior de poder ser pronunciada por qualquer um, em qualquer lugar, seja em que situação for. É uma palavra de uso público e irrestrito, sempre dita sob a posse absoluta de quem a pronuncia. Não obstante as severas proibições dos ateus e crentes das grandes religiões, Deus e palavra dita e pensada da maneira singular de cada vivente em um uso pleno de validade e eficácia jurídica. Então, há um "caminhar sobre as águas", não apenas metafórico, quando quatro vultos de mulheres deslizam no larga-mar da praia das cassarinas negras, banhadas pela luz neon do início de uma noite de verão. Não é metafórico porque ao menos uma dessas mulheres se sente, naquele momento, não só capaz de falar com Deus, mas livre para contar ao mundo os efeitos de uma comunicação sincera e potente.

Sinceramente, só posso falar com Zeferina, uma pequena deusa menor e pessoal, que, em sendo uma deusa, habita o universo no qual os deuses existem e compõem um todo visto pelos  monoteístas  como uma coisa só, ainda tendo por veículo de aparecimento aos humanos a figura de um único homem profeta, seja lá o nome que esse profeta recebe, aqui ou lá. Assim, deixo à Zeferina a árdua tarefa de se entender e se mover no mundo divino, no espaço do Sagrado, facilitando e muito as coisas para mim, que tenho Zeferina vertendo em fractais de um passado que me é próprio, privado, particular; um devir que está compondo minhas entranhas, ossos e sentidos, esses que caminham nas águas do larga-mar de uma baía de pescadores brasileiros, na luz neon do início de uma noite de verão.


Volto à casa contente com o início do assunto, sabendo que o próximo passo é deixar explícito o que sei do Sagrado e dos fractais; volto sabendo que, se não convencer ninguém de meu direito e capacidade para falar em nome de Deus, terá sido apenas um fracasso meu e de Zeferina, uma deusa menor, e essa fala continuará um devir privado, como todas as falas que oram agora, neste instante, em qualquer canto do mundo. Boa noite, Zeferina.








2 comentários:

  1. Que texto lindo e profundo, gostei muito!!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Grata. É um rascunho para um livro que se chama "Querida Zeferina"

      Excluir