Espelho, espelho meu: o PT morreu?




A lógica "farsa ou tragédia", para resgatar um tipo de olhar sobre a situação política brasileira atual, não consegue dar conta dos cenários visíveis. Há uma complexidade inaugural a transformar parte do cenário em piada e outra parte em uma ponta do Iceberg de uma guerra sanguinária. A parte piada ganha sua síntese na figura do presidente Temer, um homem perfeito para a enxurrada de caricaturas e colagens em postagens nas redes sociais. Mas seguem a esta figura tão idêntica à personagem de comédia de vampiros, ou de filmes antigos sobre o Drácula – um paradigma da solidão -, seguem um cortejo de ironias grosseiras ou refinadas a atravessarem imagens de vários políticos e políticas sobre os quais não falarei agora, até porque os assuntos “mulheres” e “feminismo” estão inseridos na parte trágica do acontecimento. Não obstante todos os ridículos que se possa elencar, de roupas, passando por cirurgias plásticas, continuando por histerias e chegando em mitologias da gueixa assustadoramente renovadas e ocidentalizadas. Deixemos o gênero descansar de todas as violações recentes.
Há muitos perguntando se o PT está morto, se ele vai desaparecer nas sombras da insignificância ou mesmo se até a sigla corre o risco de sumir. Esse é um dos assuntos mais difíceis de tratar se a intenção for superar os problemas e desafios surgidos na era Lulalá e Dilma coração valente.  Li um comentário interessante no facebook, na TL de uma moça, a Niara de Oliveira, onde ela diz que a indignação dos petistas mais parece cenas dos filmes daquele grupo de comediantes, o Monty Python, porque "sabe aquela história de quem se acha muito esperto e acaba ficando arrogante ao ponto de ficar burro? é o retrato do petê. foi jogando, dominando tudo, armando jogada-batendo escanteio-defendendo-fazendo gol e ainda correndo pra arquibancada comemorar, e acabou se achando imbatível. alguém foi observando os furos, os fios soltos e costurando um outro tapete... quando estava pronto, puxou. só faltou ouvirmos o ‘até tu, brutus?’ no desfecho final". Um comentário delicioso para quem tem sido oposição à esquerda desde o primeiro mandato do Lula, mas ainda impreciso porque permanece a pergunta sobre o que virá depois do Temer, já que a palavra “fora” está colando como o velho e bom ‘araldite’ no nome desse senhor. Eu já disse o que já foi dito por discursos visíveis que para encontrar respostas certas é preciso fazer perguntas certas. A minha pergunta então seria: como construir uma alternativa à nova hegemonia capitalista, no Brasil e no mundo, hegemonia esta que aponta para uma guerra genocida e sanguinária contra os subordinados descartáveis? Ou seja, ainda que toda a população odeie as elites escravocratas, coronelistas, injustas, cruéis, como diria o personagem infantil, o Chaves, “quem poderá nos defender”? Penso que:
 O Brasil é um país que tem suas narrativas visíveis construídas por, grosso modo, dois tipos de elites: as 'escravocratas' e as 'abolicionistas'. Para os cientistas, vou dizer que ambas as palavras eu utilizo em um esquema que é movido livremente entre o tipo ideal weberiano e o caleidoscópio deleuziano (Gilles Deleuze) das 'máquinas', dos 'fluxos', das 'séries' e dos devires. Então isso aí são palavras circo, encenações, mas são palavras projetos, ideias. E estão postas em uma cena sadomasoquista, ou se preferirem, em um tipo de cenário bipolar (tá na moda e todo mundo mais ou menos entende). Essa bipolaridade foi construída em trezentos anos de escravismo formal e o antropólogo Ricardo Benzaquen de Araújo intui muito bem o que eu vou chamar de “transtorno psicológico coletivo na formação da nação brasileira” (essa ideia é minha, o Ricardo prepara as bases para ela no livro Guerra e Paz – Casa Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre, mas não a desenvolve), quando afirma que temos uma sociedade se movendo equilibradamente em um hibridismo entre violência e confraternização. A palavra 'hibridismo' tem a ver com perversidade, falta de regras, distorção, mistura, meleca, falsidade, simulacro, desordem. Pois bem, esse equilíbrio é sempre tenso, dilacerante e dilacerado e, importantíssimo, não é dialético, ele não gera mudanças em novas situações-síntese. É como se a história do Brasil transcorresse em dois movimentos, um no tempo linear e evolutivo onde os acontecimentos capitalistas se desenvolvem (colônia, império, exportação, escravismo, república velha, abolição, 1930-Vargas, ditadura, desenvolvimentismo, exército, estado nacional, populismo, ditadura militar, etc) e outro movimento, no tempo cíclico, de repetições traumáticas, sempre referenciado na lógica da bipolaridade entre escravocratas e abolicionistas. Esta lógica é cultural, especificamente brasileira e funda a Nação, ela é linguagem, relações sociais. Dessa lógica deriva uma espécie de esquizofrenia da discursividade – ou narrativas - permitida para ser visível, que são os discursos produzidos pelas elites econômicas, políticas e intelectuais. O hibridismo estudado por Ricardo Benzaquen se multiplica em espelhos, na minha análise, em uma espécie de cacofonia gerada pela sobreposição dos movimentos reais do desenvolvimento do capitalismo em um país como o Brasil e as narrativas sincréticas das elites escravocratas e abolicionistas. Resumindo, para entrar no estilo conciso e claro da Niara de Oliveira, a moça do comentário feliz no facebook, eles não são mentirosos, nem o pessoal do PT e nem o pessoal dos golpistas, eles são a representação de uma perversidade tatuada na matriz das relações sociais no Brasil. De certa forma, eles são loucos, porque se fossem lúcidos não achariam razoável a convivência pacificada e cotidiana entre escravistas e abolicionistas, depois da tal Lei Áurea, da lei da abolição da escravatura de 1888. Porque, na verdade, nunca deveria ter podido ser pacífica a convivência entre essas duas noções, a menos que elas fossem híbridas, misturadas, perversas desde sempre.
Assim, o golpe de 2016 é um ataque do discurso escravocrata contra o discurso abolicionista na intenção de conter o ponto, a passagem, onde a psiquê coletiva se movia em direção a ruptura com a discursividade permitida e iniciava a formação de padrões quilombolas de discursos coletivos sobre a Nação. Por “padrões quilombolas” entendo as narrativas produzidas no interior de espaços da sociedade que se pretendiam exteriores às falas e ideias que conseguem aparecer nas grandes mídias (e mesmo nas mídias de grande visibilidade, ainda que alternativas).  Esses padrões insurgentes não vinham dos discursos oficiais dos partidos presentes nos governos Lula e Dilma e que se declaram “de esquerda”, sequer do Psol e do Pstu. Ambos os partidos pequenos citados vinham tecendo narrativas ainda espremidas dentro do espaço de discursividade permitida, que durante o pós-ditadura militar era o discurso de gerenciamento de uma democracia (frágil, inexata, mas lá, supunha essa discursividade que a democracia estava lá). A ruptura em padrões quilombolas se dava tanto em pressões de bases de todos os partidos do campo abolicionista, em movimentos sociais não facilmente cooptáveis (como são cooptáveis no Brasil os movimentos sindicais e de periferias urbanas) e em oposições sindicais e populares, quanto em um reaparecimento de novas versões anarquistas de insurgência em sociedade. Ou seja, o discurso abolicionista não era mais eficiente para hegemonizar uma narrativa sobre a democracia no Brasil, sobre a história do Brasil, sobre os possíveis futuros do país. Nesse sentido, o segundo mandato Dilma é um travamento do governo dentro de impossibilidades na relação entre o tempo linear (das decisões dos caminhos do capitalismo no Brasil) e o tempo cíclico (do discurso, da cultura). Se os escravocratas não dessem um golpe, os abolicionistas seriam empurrados pelas práticas quilombolas e o Brasil entraria em um cenário insurgente.
A derrubada do discurso abolicionista no cenário atual é um acontecimento novo, em um país da tradição escravista moderna (1500 a 1888), onde o mito da abolição integra os principais pilares da ideia de Nação. Nesse sentido, o PT é uma incógnita, porque ele era necessário ao capitalismo, o discurso abolicionista sempre foi necessário ao capitalismo. Bom, a pergunta é: estará o capitalismo em uma crise estrutural? Há vários teóricos dizendo que sim e que agora teremos um período de desmanchamento civilizacional impar em toda a história da humanidade. O PT não é cachorro morto. Para o bem e para o mal. Talvez a crise maior, ou o maior dilema fique colocado, como batata quente, no colo dos grupos e partidos de esquerda que sempre se pretenderam alternativa ao Partido dos Trabalhadores, já que se o abolicionismo não mais interessar ao Capital, se as elites donas do mundo não mais se sentirem apegadas a valores democráticos, como está parecendo pela insana crueldade cometida contra jovens nas ruas das grandes cidades, então precisaremos de uma nova narrativa. E dificilmente o Petê saberá ergue-la. Mas dificilmente essa nova narrativa poderá abrir mão de nosso precário e sofrido passado abolicionista.

Talvez Monty Python sejamos todos nós, os subordinados descartáveis, precisando desesperadamente nos proteger de qualquer inquisição que apareça a qualquer momento. Talvez a gente precise urgentemente pensar juntos.

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