O lixo do edifício

     
       

Morei vinte anos em uma rua calma e arborizada, chamada "República", em Porto Alegre no Rio Grande do Sul, em um edifício de cinco andares com uma escada estreita e elevador pequeno. Entre 1978 e 79,  fui embora desse lugar onde vivia no andar térreo, com a mãe, o pai e os dois irmãos. Desde os quatorze anos, tive um quarto só para mim, no meio da casa reformada para ganhar uma peça e privacidade para a menina-moça, entre a cozinha e a sala. Sentia-me só, afastada do lugar certo dos quartos, mais próxima do perigo de encontrar baratas e ratos. Era uma família envolvida em um ambiente temeroso, desconfiado, silencioso, em grande parte gerado pelo fenômeno estúpido e cru das ditaduras militares na América Latina, posteriores aos governos e movimentos consagrados como "populismos" da primeira metade do século XX. Mais tarde, em 1980, usávamos essa expressão "populismo" de um modo irreverente, nós os jovens fundadores do Partido dos Trabalhadores, entendendo a palavra como o nome do problema fatal do PTB do Getúlio - e depois da Alzira -, problema herdado pelo time do Brizola (e de Dilma Linhares) e seu PDT - Partido Democrático Trabalhista.  Lembro de oitenta como um tempo no qual eu ouvia falar em um trabalhismo de novo tipo, inaugural, a ser inventado dentro do PT, mas lembro de não dar muita bola para problemas ou dificuldades dessa invenção porque tudo, para mim, era festa, paixão, prazer. Em oitenta, eu tinha uma confiança igual a que vejo nos crentes evangélicos em 2016, ou nos adeptos enraivecidos do MBL, o movimento brasil livre, que fez manifestações para derrubar Dilma e o PT. A diferença - fundamental - é que nós éramos propositivos, alegres, e nossas bandeiras eram predominantemente nossa auto-afirmação como modelo e não o repúdio a um outro projeto. Éramos iluminados, amáveis, e nossa luz irradiou para toda a população do Brasil. O PT era, claro, os metalúrgicos paulistas e as pastorais da terra, seus pilares. Mas havia um terceiro pilar, que talvez tenha escorrido para o Psol, em um novo formato adaptado ao início do século XXI, que era a juventude libertária brasileira. Mas isso é outra história. Antes disso, falo aqui da década de setenta e do edifício da República.

Minha mãe acalmava e ordenava a turma toda por meio de um grande objetivo dela, tornado de todos nós dado o grau de poder coativo que a forte mulher - filha de militar de baixa patente e dona-de-casa tomada pela ideologia positivista - tinha sobre todos, lá em casa. Era apaziguador, calmante: estudar, ler, pesquisar e apreciar boas músicas clássicas para ser alguém forte na vida, no mercado de trabalho. A televisão - ainda ingênua e parcialmente delicada em sua potência de mensagens - anestesiava a turma pra crer no progresso, no desenvolvimento, na ordem social criada pela ditadura e, subliminarmente, em uma democracia futura, mas tínhamos um tempo para vê-la e não apenas por imposição da mãe, mas porque ela não era mais importante que os estudos ou os brinquedos na rua, na calçada, no edifício sem porta e com entrada aberta. O socialismo era um sonho para muita gente, um acontecimento aparentemente imune à degradação, perenemente positivo, uma esperança vivida na metade do mundo onde ele não era um acontecimento real. Talvez a guerra fria tenha provocado  secretos desejos de pertencimento ao outro, ao mundo do outro lado do muro, nos dois campos contrários. Não sei. Sei que tive uma professora jovem e linda, lá por sessenta e oito, que era ruiva e eu a adorava. Vinte anos depois, fiquei sabendo que essa professora havia denunciado uma outra, velha e feia aos meus olhos, porque esta havia reclamado dos treinamentos com marchas para os desfiles da semana da pátria. Minha mãe então me contou que achava ser  brizolista essa profe acusada. E eu havia sido chamada para depor contra a professora feia e braba, na secretaria da escola.  Lembro do meu sentimento, na ocasião, de querer ajudar a linda contra a feia e braba. Não sei o que aconteceu, mas parece que a professora denunciada foi protegida pelos colegas e tudo se acalmou. 
                
               No edifício de número 432, onde morávamos no apartametno um,  existia um fosso vertical correndo por todos os andares, ao lado do meu apartamento, até o último andar. No térreo, no fim do fosso, ficava um enorme latão dentro do qual acabavam caindo os lixos que eram jogados em gavetinhas de metal, em cada andar. Ficava uma imundície, todos os dias, e a zeladora e seu marido juntavam toda a porcaria apodrecida e levavam o latão para a frente do edifício, para ser recolhido pelo caminhão da prefeitura.  O fosso propriamente não era lavado e apenas o lugar do latão era objeto de higienes regulares.  Então aquela sujeira toda sustentava criações de ratos e baratas que invadiam o nosso apartamento. Por isso o meu quarto ficava sempre fechado, venezianas fechadas, na tentativa de evitar a entrada dos ratos. Um dia acordei com um deles, cinza, pequeno, na minha cabeça.


          Quanto tempo durou aquela maneira de lidar com o lixo? Era uma imundície verdadeiramente medieval, compactada em um formato urbano moderno. Como as pessoas não conseguiram pensar em levar o lixo pela escada, até o térreo e colocá-lo na rua, como se dispuseram a jogá-lo do alto? Lembro agora de uma outra cena estúpida nas mesmas proporções: produziam aquela imundície toda e, ao mesmo tempo, viam filmes da década de 1930, Hollywood, nos quais os casais de protagonistas fumavam às pencas antes, durante e depois do encontro sexual "romântico". Na época de final desta década, sessenta, nos grandes festivais de música popular brasileira era possível ver os jovens cantores e compositores fumando no palco junto com os apresentadores. Fumava-se às pencas. 

         Não sabíamos o quanto éramos irracionais, na segunda metade do século vinte, agora sabemos; não tínhamos "retorno", ou seja, capacidade de ver-se a si próprio em sua própria caricatura, percepção das nossas dimensões limitadas de consciência e conhecimento da multiplicidade de sentidos ilógicos em nosso modo de agir. Éramos uma sociedade em êxtase com sua mitologia do desenvolvimento industrial e tecnológico. Nunca passou pela cabeça de alguém, naquele edifício, a possibilidade lógica da separação dos restos limpos de vidros, plásticos e embalagens; de que talvez até pudéssemos jogar o lixo limpo buraco abaixo, mas o lixo da comida poderia ter sido levado em sacos até o andar térreo, até à rua. Teria sido um raciocínio simples e tão útil. Mas ainda que muitos tenham adquirido sensibilidade para uma contra-intuição contrária à produção de lixo (tanto no mundo exterior, quanto em nossos próprios corpos), essas formas insanas de sociabilidade onde a produção de lixo é hipertrofiada parece que só aumentaram e vivemos em um século vinte e um tão poluído por imundícies de todos os tipos.
     
                Durante todo aquele período estava se gestando a solução de saída daquele mundo: a primeira era da informática, impulsionadora de uma nova e formalmente devastadora onda tecnológica. Um tsunami. Os acontecimentos políticos e de sociabilidade da época não "sabiam"  nada do que iria acontecer. As ditaduras e os socialismos eram totalmente ignorantes de um destino humano de dimensões virtuais imersas em potência tão diversa das potências acontecidas até meados do século XX. Voamos todos para um outro planeta: pequeno, frágil, assustado, uma enorme colmeia de humanos-abelhas com as mãos grudadas em teclados e os olhos fixos em telas/janelas para todo e qualquer lugar do mundo. Mas aquela capacidade de jogar o lixo por um poço imundo continua lá, aquela incapacidade de "retorno" continua quase intacta. Estamos todos, ainda, morando em ruas Repúblicas, só que agora em edifícios trancados em muitas chaves e grades, com muitos policiais e porteiros em volta. E alguém ainda carrega nossos latões de dejetos. Rejeições e esquecimentos de objetos facilmente descartáveis, restos de comida de pouca importância, e seres humanos jogados ao desastre e à melancolia. Conforta-me saber da existência, ainda e sempre, de mães que têm poder para ajudar seus filhos a estudarem, têm vontade de ver estudantes adquirirem conhecimento e sabedoria, mais do que as disciplinas das marchas marciais, sejam elas de que lado do mundo forem, sejam elas feitas ao som de coturnos batendo no chão ou ao som de músicas comerciais, do tipo sertanejas, ou funk, ou ainda um hip-hop despido de sua potência original ou um pagode para bobos da corte.

                                                                               











9 comentários:

  1. Demais. Texto q te faz nao conseguir parar de ler, observacao singular da realidade. Gracias!

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  2. Nossa! Entrei no túnel do tempo e não parei! Por ironia, entrei por uma "janela" aberta na página de um amigo, e desemboquei nos idos de 80! Talvez esta esta uma das delícias da internet, poder chegar alcançar alguém, que não se sabe quem é, mas que de alguma forma nos acaricia com palavras, nos oferece a possibilidade de viajar e refletir.Muito obrigada pelo passeio!

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  3. Linhas que prendem nossos olhos...Analogias que fazem da reflexão atitude obrigatória!

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