Confissões sobre psiquiatria


                     Andei por vários psiquiatras desde o início da medicação com Anafranil. Foi esse remédio que me  tirou da situação de "morte interna", uma experiência xamânica, eu diria. Dom Juan Matus, o mestre de Castañeda havia escrito que a experiência sagrada, quando vivida sem a proteção de um guia, um mestre, pode matar (digamos que pode até facilmente matar). Na medicina, a "morte interna" é uma incrível sensação de vazio por dentro, como se você visse com seus próprios olhos um corpo por fora, o seu, sem que ele tenha você por dentro. Como se você visse um filme, em close, e teus olhos fossem a câmera e teu corpo e tudo em volta a imagem na tela. Eu deixei de existir e, ao mesmo tempo,  vi meu próprio corpo, com meus próprios olhos. E andei pela cidade natal, atrás de um psiquiatra, assim, sem ninguém dentro. Falei com o primeiro psiquiatra da minha vida assim, cavaleira inexistente munida apenas da armadura e de uma consciência plena e lúcida: estou muito doente, aquele sofrimento virou um instante antes da morte e se cristalizou assim, deixei de existir e estou viva, ainda.

                   O psiquiatra achado por mim disse que depois de uns dois dias dormindo por causa do Valium, e tomando Anafranil, eu acordaria comigo dentro de mim e para sempre. E para sempre tomando bloqueadores do Pânico. Foi meu primeiro psiquiatra, antes dele uma psicóloga, antes dele e dela eu ainda achando que só quem fica louco (sentindo essa idéia do mesmo modo como sentimos as idéias "assim como quem pega Aids" ou "assim como quem pega um câncer devastador), quem pega "loucura",  precisa de psiquiatra.  Depois de "pegar loucura" estive em mais seis ou sete psiquiatras. Larguei o primeiro porque ele, mais tarde, me pareceu um tanto insano; larguei a segunda porque tive a sensação, a uma certa altura, de que ela era muito mais infeliz do que eu; larguei o terceiro porque ele era maravilhoso, o pai que eu queria ter tido e ele queria que eu virasse uma moça adorável para um bom homem intelectual e culto me adotar como esposa. Um dia o velho comentou, a respeito de um intelectual conhecido na cidade e que tinha saído comigo umas vezes, "ele não é esquizofrênico, ele é ..." e disse algo sobre o cara ser um pouco abaixo da frequência que garantia relações saudáveis. Aí eu larguei o velho.

                      Estive,durante um ano, em uma psicóloga e pegando antidepressivos com um psiquiatra que ela indicara. A mulher foi embora da cidade e o psiquiatra também. Passei, então, por um perfeito idiota, que nem vale a pena contar agora (ele devia ser ligado à maçonaria - sou louca, quis experimentar a indicação de um maçom - e eu falei que a maçonaria perseguia pessoas como eu, e ainda perseguia junto com o pessoal do PT, nas gestões do serviço público depois que o Lula se elegeu, a maçonaria e o PT perseguiam a resistência de esquerda, que lutava - lutávamos - contra a exigência de produtividade abusiva, nos governos de 1990 em diante); o cara me deu um remédio para esquizofrenia. Eu achei ele doido e tomei para experimentar que barato dava; fiquei tendo momentos catatônicos, nos quais eu esquecia tudo o que estava a dizer e perdia a  conexão com a pessoa com a qual estava falando. Disseram: larga essa porcaria...vai num médico decente, mulher....

                      Fui num médico decente e comecei a tomar Fluoxetina e, mais tarde, Citalopram. Tomo 20 mg por dia. Tentei parar uma vez e comecei a ter arrepios em ondas e, antes que explodisse a adrenalina, voltei a tomar o bloqueador.

                        Adoro a Cidade Natal tanto quanto adoro ter ido embora. Ela é Blade Runner, um lugar do qual se deve ir embora, ainda que um dia se possa voltar. Esse é um sentimento- tango, meio Gardel.

                      No meio dessas aventuras, uma vez, fui a um psiquiatra bonito e em torno de 35 anos (aquela idade dos homens heróis das revistas Sabrina e das novelas de canal aberto) com cara de judeu. Ele falou que havia confusão no meu relato, que esta confusão me impregnava em razão do sofrimento ao qual eu havia sido exposta durante a minha vida. Diante da minha calma decepção com o que ele estava afirmando, ele falou: -“tu sabe, né? Tu sabe o que eu estou dizendo, tu é lúcida, tu entende que existe uma confusão e que tu luta para lidar com ela...tu é muito intelectualizada, tu percebe....”. Ele falou tudo isso com uma cara de "hamrãmm..heim?...te peguei, não?..confessa...". Esse cara tá dizendo que eu sou louca, pensei. Mostrei, tranquila, minha  decepção: você tá me chamando de louca, ele ficou nervoso, não deu certo, fui embora.
                     Depois fui ler Michel Onfray e seu “Tratado de Ateologia”. Não concordo com muita coisa mas me identifiquei com os ateus históricos descritos por ele como perseguidos.
                    Vinte e cinco anos depois de eu ter "pegado loucura" e dessas minhas andanças por psiquiatras entendi que loucura se pega quando somos submetidos a agressões súbitas e devastadoras, ou a agressões sutis e mascaradas mas contínuas e durante décadas; muitos de nós herdaram uma loucura pegada por seus pais e avós e mantiveram ela escondida na memória adquirida, até que uma violência qualquer a vertesse para o exterior de seus corpos. Os que não pegam loucura acabam pegando outra coisa: ninguém fica igual perante a tortura, a crueldade a perversidade, sejam elas visíveis ou dissimuladas.







2 comentários:

  1. Uau! Dinah! Continua! Você escreve muito bem! Adorei. Também tomo um bloqueador chamado Citalopram, parece que o nome está dizendo: Cita um aloprado, rsss). Teu relato é ótimo! Manda mais!

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