O novo ascetismo: anarco-eremitas



Antigamente as pessoas escreviam e-mails, agora só vemos a utilização de mensagens curtas em redes sociais e em celulares. Você percebe como a tecnologia evoluiu com uma velocidade a cada ano maior? Você entende que a transformação constante das formas de ver, ouvir, falar e sentir cria um sentimento latente, sub-reptício, de ausência de importância para os significados de todas as coisas que não são grandes, fundos e definitivos rastros? Os ídolos, os governantes, as celebridades, os grandes cientistas, empresários, inventores, modelos, atrizes, atletas, os grandes traficantes, os mais terríveis criminosos, as vítimas mais famosas. Ainda escrevemos e-mails, no trabalho, ou para comunicações mais formais; talvez alguém na contramão dedique-se a compor longas cartas em correspondência eletrônica. Você sabe, isso vai parar,  essa velocidade cada vez maior vai bater em um muro, esse limite é quase visível. Teremos de nos acalmar.

Adiantaria construir, com cuidado e retidão, uma teoria esclarecedora de que isso é um totalitarismo de proporções inéditas e, portanto, de desmanchamento inimaginável? O remédio poderia ser uma enorme, fantástica e rigorosa explicação? Um grande livro para ser distribuído ao mundo inteiro, explicando que não podemos continuar vivendo dessa maneira?  E se fosse possível encontrar um sujeito imune e munido de um discurso inaugurador, a quem ele remeteria sua linguagem? Pensar se o sujeito acontece, se ele brota de si, se ele nasce de intersecções coletivas e realiza uma nova sociabilidade confundindo-se com ela seria um caminho de entendimento? Por meio de que atitudes podemos ter esperança de mudar o desmanchamento cruel desse mundo no qual vivemos?

Parece haver o caminho da oração, do abandono do"ego" em osmoses de entrega absoluta a devires de quem quer que impulsione os acontecimentos, seja quem for e como se pareça. Mas não estamos  vendo os caminhos de oração interferirem na velocidade com a qual o mundo é desorganizado pela tecnologia sempre em mutação. Além das entregas a deuses nomeados há, sem dúvida, uma entrega generalizada à drogadição, cada vez em maiores proporções, isto é, aumentam os que rezam e aumentam os que se tornam dependentes da adição de algo, para fazerem as suas vidas valerem a presença no mundo, seja o uso de drogas ilegais, seja o uso de álcool, de tabaco, de açúcar, de gordura, de refrigerantes, de objetos comprados alucinadamente em castelos/igrejas do deus Consumo, chamados "shopping". 

Há alguém que saiba o que (ou quem) está resistindo a isso, a essa grande colisão? Defender tribos ou animais em extinção é resistir? Protestar em redes sociais é algo que bloqueia a profusão de inaugurações sem controle de quem quer que seja? Existe alguma possibilidade, diante da colossal violência praticada por um por cento sobre noventa e nove por cento da população humana, e, de resto, sobre os demais viventes no Planeta Terra, a mais ínfima possibilidade de que o espaço virtual amplie a liberdade de expressão dos indivíduos e aumente os entendimentos coletivos propiciando uma contenção do desmanchamento generalizado das memórias? O espaço virtual pode abrigar o dom de consolidar memórias e entendimentos?

E se isso for um único e devastador redemoinho? Um furacão só não desordena aquilo que não atinge.
Percebe? Quantas pessoas neste mundo se mantém descrentes de toda essa parafernália produzida pela maneira capitalista de organizar o Planeta e se sentem habitando um tempo que não é o seu? Os eremitas, as múltiplas formas do ascetismo hodierno onde estão?

Você deve estar pensando em monges passando fome no deserto.  Ascetismo: "Prática da abstenção de prazeres e até do conforto material, adotada com o fim de alcançar a perfeição moral e espiritual. O asceta submete-se a dieta rigorosa e a frequentes jejuns, sendo que os antigos cristãos se sujeitavam até a castigos físicos, como a flagelação". Do dicionário on-line. Não, não é isso. Todas as formas de sujeito e de coletividade conhecidas foram tragadas pela metamorfose compulsiva, isto é, os antigos eremitas estão por aí, pendurados em ausências enfeite, eles mesmos um prenúncio de um nada. Falo de uma nova espécie de ascetismo, não sei bem sobre o que falo, sinto, sinto ardentemente, convicta, apaixonada. Quero descobrir o que seria isso: uma subjetividade não egocêntrica surfando na inconstância dos acontecimentos, na perda de memória; abrigando entendimentos invioláveis, pétreos, inesquecíveis.


Vocês estão aí, eu sei. Não sou única. Não tenho tempo para estudar  a Bíblia e os outros livros sagrados; não me é permitido ter tempo para ler com calma os filósofos: Hegel, Marx, Nietzsche, Adorno, Lacan, Deleuze, Guattari, Safatle e tantos outros. Mal consigo estar atenta e forte. Não sei afirmar por onde anda o sujeito e no que ele configura coletividades ou é posto por elas. Sei que passa por mim uma recusa intensa do que é o mundo hoje, do que são as diversas ordens simbólicas da propriedade concentrada, da formação do Capital. Meu ascetismo não se manifesta na disciplina da abstenção dos prazeres materiais, ele é mais uma recusa constante de aceitar esse mundo do consumo e da velocidade, da guerra e do desperdício, da crueldade e da imposição; meu ascetismo é meio louco e passa, às vezes, pelo vinho, pelo cigarro, pela comida com carne e molho. E pelos remédios para suportar o medo e a tristeza de ser obrigada, todos os dias, a trabalhar de um modo insano, para sustentar uma cultura insana que nos subordina. A perfeição moral e espiritual, para mim (o meu "mim" se sente existindo, embora tenha quem diga que somos todos objetos afetados por um destino) é querer tudo e todos tranquilos, pacificados, criativos, fluentes, exatos e cheios de esperanças. 

Somos anarco-eremitas, todo mundo sabe que somos criadores de uma nova experiência de recusa do que nos é oferecido como "prazer mundano". E estamos por aí, sós. Significado de só: único. Sujeito? Será? Sim, acho que sim, o que está acontecendo vem de dentro de nós, novos ascetas, e é criação. 

                                                               versão 4 (escrita a versão 1 em 2009, melhorada, um pouquinho, em 19.01.2013)


2 comentários:

  1. Eu não sendo nenhum qualquer coisa, conceituo isso como auto-sugestividade, compulsiva individual e coletiva. E essa concepção abre precedentes para um a grande degeneração absoluta e desordenada.

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