Licurgo, sentava-se quase sempre à mesa bem do
canto, um lugar escuro com visão para todo o bar, uma espécie de guarita de um
voyeur. Em sua mesa, a "mesa do Lico" havia um abajur de vidro fosco
e rosa antigo com pingentes de cristal branco pendurados. Bebia em geral vinho
bom, caro, cabernet sauvignon ou franc, ás vezes merlot ou tannat, garrafa
posta ali para durar uma boa parte da noite. Vez ou outra um coquetel feito
pelo barman, Marfísio, que ao menos aquilo ganhara em Dallas, o saber fazer
coquetéis coloridos, enfeitados com dobraduras que mais pareciam origami,
feitas por ele mesmo. O Lico, como era chamado no bordel e também nos lugares
onde trabalhava, que ninguém ali sabia direito, achavam que ele era funcionário
público, muitos sabiam que era federal, poucos temiam que fosse um polícia
desses que trabalha para a CIA, como nos filmes. Todos sabiam que já tinha sido
candidato político e depois deixado aquilo por uma confusão sobre a qual
ninguém sabia quase nada. Bebia profissionalmente, isto é, bebia para seguir
bebendo a vida inteira, um alcoólatra disciplinado, diferente desses mal
educados que se desmancham em cachaça e uísque antes dos quarenta anos e depois
não podem mais beber pois acabarão sendo internados novamente.
Ele era seboso, embora limpo, e
usuário de perfume caro de homem forte. Mas ao mesmo tempo guardava um estilo
refinado, com cara de quem é do governo, de quem observa para depois mandar
alguém desmontar ou montar algo. Era frequentador regular, falava como um sócio
ou parente, metia-se em tudo, mas sempre de um modo discreto, falando baixinho
e só com a dona e gerente, com seus ouvidos de pesquisadora de tendências,
desejos e opiniões dos clientes assíduos e influentes na comunidade local. E só
falava o essencial, deixando de lado malformações desimportantes ao seu
julgamento. Naquele primeiro dia do teatro de Ana, Rarlet sentara naquela mesa
do Lico tomando cerveja escura e amarga, uma das suas várias bebidas
preferidas, naquela hora em que as coisas já se encaminharam, as garotas
dançando com os homens do dia e servindo bebidas, enfiadas em micro-vestidos
colantes, shorts jeans rasgados, mínimos e abrindo ângulos tórridos de visão
das bundas duras e livres, shortinhos ora largos e displicentes, ora bem
cortados e quase colegiais; vestidos leves e mínimos, de alcinhas caindo,
barras evasiés esvoaçantes como cortinas curtas de voal em janelas com
calcinhas bunda adentro entre cheiros e umidades cuidadosamente perfumadas,
botas pretas de cano alto, peitos saltando em decotes de meia-taça, cabelos
compridos escorrendo em silhuetas de dorsos empinados por lordoses de ofício.
De tempos em tempos, garotas
quase nuas dançando em uma barra cilíndrica de alumínio, fixada no centro de um
palco colocado no canto oposto ao da mesa do Lico, em uma diagonal traçada da
extrema esquerda ao fundo do bar, a mesa do “candidato”, como os estivadores o
chamavam, do lado da entrada, discreta e distante do fervo. "Que deu em
ti, Rarlet, pra inventar essa velha agora, sem pé nem cabeça, doida?",
dissera ele surpreso e irritado, como ficava quando o problema era importante
porém ínfimo, quase banal. Já se o caso fosse de proporções municipais ou
maiores ainda, como os grandes problemas políticos nacionais e de vários outros
países daquele tempo, Licurgo deslizava com naturalidade para uma atitude
calma, irônica e discreta, como um entendido capaz de decidir. A bugra atriz
tinha dito coisas pra ninguém entender, ali no palco, no começo de uma noite
fraca e um tanto vazia, uma ladainha de louca de rua, sobre uma tal menina
falando segredos sozinha e depois música de criança cantada por ela como velha
em procissão…uma cena estranha e inesperada a deixar os poucos homens presentes
e as putas surpresos. As mulheres mesmo estranharam, umas riram, outras amarraram
a cara, antevendo. Rarlet sorriu quase nada ao beber um gole bom e passar a
língua nos lábios antes de explicar ao Lico: "ela tá pagando, é só uma
noite, das mais fracas, entra mais um dinheiro, e é um teatro, uma coisa nova
para atrair gente. Dona Ana, o nome
dela, e o preço é bom, tô deixando ver o que acontece. Sempre posso dizer que
assim ou assado não quero e ela vai ter que mudar. Vamos vendo... “. O Lico
respondeu, "Tu perguntou o nome
todo dela? De onde vem?", o candidato
era um investigador desconfiado, "parece louca", disse. Ao que a
cafetina respondeu ser certamente uma hiponga de cidade grande, pelo sotaque do
extremo sul do Brasil, uma daquelas tantas mulheres mais velhas e cansadas de
tantas aventuras vividas, aquelas que vinham para a beira do mar sozinhas e
acabavam se enfiando em um dos tantos centros exotéricos e religiosos que havia
naquela região. Era provavelmente uma atriz fracassada, o teatro uma brincadeira para a mulher se
distrair. ” Não parece brincadeira, parece uma charada idiota, uma tristeza de
mulher velha, um papo de doente mental”, falou Licurgo, ao que a dona
respondeu, dura: "ela está pagando, aqui todo mundo paga e quase nunca é
bem uma brincadeira e eu falo com ela para acertar o que pode e o que não pode
ser".
Durante a conversa de Halê com o candidato (naquele lugar todos tinham
apelidos, às vezes mais de um), Ladisleine dançava na barra um “pole dance”
lânguido, quase triste, também pensando nos sentidos possíveis para a fala da
velha, a tal Ana, aquele teatro mais parecendo brincadeira de criança solitária
com suas bonecas; a Leine com seu corpo perfeito de Cinderela, de modelo, de
miss, pele e cabelos dourados, olhos amendoados e cor de mel claro; a Leine
fria e quieta, distante sempre, não fazia amizade com as outras, dava uns
sorrisinhos enigmáticos e ausentes, respeitada e invejada por todas por ser a
mais cara, mais valiosa, mais jovem e possuidora de uma atitude estranha,
parecendo desprezar tudo aquilo, tudo no mundo, toda a vida de todos ali. Dançava pensando na atriz: de
repente a velha fora parar no palco, arrastando umas tralhas, uns panos,
sacolas, uma boneca barbie amarrada em uma faixa enrolada do ombro ao outro
lado do quadril; dona Ana sentara-se no chão do palco, pernas cruzadas, com as
coisas a sua volta. Rarlet, como combinado com a velha, mandara apagarem as
luzes, menos aquela na base do palco. A velha havia demorado tempo demais, ali
parada, imóvel, os outros já preocupados. E quando todos já estavam olhando
demais, focados, falara: "Nunca entendi
como ele conseguia fazer aquilo, como naquela festa de natal, a família inteira
reunida e circulando em uma confusão de senta e levanta, alcança bandejas de
salgados e doces, enche e esvazia copos, risadinhas e vozes de todo o tipo e
ele me olha, então, em um rápido instante em que ficamos sós em meio a todos,
como se os outros estivessem em outro mundo, outro plano paralelo, súbito só eu
e ele, sem testemunhas, e ele empurra sorrateiramente uma pequena barra de
chocolate tirada do bolso de seu paletó, empurra na mesinha do canto, olhando
pra mim daquele modo cúmplice e safado que me dava nojo e medo, e eu sorrio
fingindo gostar, colaborar, e ele diz baixinho, 'pra ti', e eu pego o chocolate
e guardo no bolso do casaco. Aquele 'pra ti' nojento". Ai, a velha
silenciou, passou a mão na boneca, lentamente, e continuou: "Todos não vendo como se vissem e nos
deixassem a sós, como se fosse um direito dele ter esse plano de vida só
comigo, como uma lei, a mim só restando fingir gostar, um fingimento cheio de medo
e nojo escondidos em meu sorriso de menina que seduz todos os homens do mundo".
Dona Ana havia encenado, falando ora como quem conta história pra criança
dormir, ora como uma batuqueira das mais fortes baixando preto velho. Ela falou
tudo aquilo e desembestou logo, direto, em uma musiqueta cantada com voz de
sertanejo antigo: "Terezinha, de
Jesus, deu-se a queda e foi ao chão, acudiram três cavalheiros, todos os três
de arma na mão…o primeiro foi seu pai, o segundo seu irmão, o terceiro foi
aquele…”. E a velha parou naquele ponto da música, naquele “aquele”,
deixando o tal aquele sumir aos poucos como um mantra budista, de olhos
serrados, apertando a boneca no peito, a susie pelada e de cabelos loiros
desgrenhados, segurando a voz sumindo um tempo de causar surpresa e chamar
atenção, e súbito levantou e saiu do palco, agarrada nas tralhas, de cabeça
baixa, envolvida em um sumiço abrupto. Indo embora sem se despedir de ninguém,
mesmo porque ninguém a conhecia; só pegando e saindo porta afora. Leine dançava
absorta, pensando em toda a cena da velha, pensando na velha, e em dúvida sobre
o que pensar.
Licurgo, lá no seu canto, ficou
não gostando daquilo. Rarlet, curiosa, iria conversar com Ana, saber seu nome,
ver por onde a mulher já não tão nova e com aquela trança grisalha desejava ir.
Leine dançava enroscada na barra de alumínio uma dança lenta, alongada,
luxuriante pensando em Terezinha, a Terezinha da dona Ana, as terezinhas
tantas, tão meninas dos homens do mundo.
Muito bom , bem literário.
ResponderExcluirÉ um rascunho de um folhetim. Grata.
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