Terezinha de Jesus - versão dois - Bar da Rarlet

 
                       
 Licurgo, sentava-se quase sempre à mesa bem do canto, um lugar escuro com visão para todo o bar, uma espécie de guarita de um voyeur. Em sua mesa, a "mesa do Lico" havia um abajur de vidro fosco e rosa antigo com pingentes de cristal branco pendurados. Bebia em geral vinho bom, caro, cabernet sauvignon ou franc, ás vezes merlot ou tannat, garrafa posta ali para durar uma boa parte da noite. Vez ou outra um coquetel feito pelo barman, Marfísio, que ao menos aquilo ganhara em Dallas, o saber fazer coquetéis coloridos, enfeitados com dobraduras que mais pareciam origami, feitas por ele mesmo. O Lico, como era chamado no bordel e também nos lugares onde trabalhava, que ninguém ali sabia direito, achavam que ele era funcionário público, muitos sabiam que era federal, poucos temiam que fosse um polícia desses que trabalha para a CIA, como nos filmes. Todos sabiam que já tinha sido candidato político e depois deixado aquilo por uma confusão sobre a qual ninguém sabia quase nada. Bebia profissionalmente, isto é, bebia para seguir bebendo a vida inteira, um alcoólatra disciplinado, diferente desses mal educados que se desmancham em cachaça e uísque antes dos quarenta anos e depois não podem mais beber pois acabarão sendo internados novamente.
Ele era seboso, embora limpo, e usuário de perfume caro de homem forte. Mas ao mesmo tempo guardava um estilo refinado, com cara de quem é do governo, de quem observa para depois mandar alguém desmontar ou montar algo. Era frequentador regular, falava como um sócio ou parente, metia-se em tudo, mas sempre de um modo discreto, falando baixinho e só com a dona e gerente, com seus ouvidos de pesquisadora de tendências, desejos e opiniões dos clientes assíduos e influentes na comunidade local. E só falava o essencial, deixando de lado malformações desimportantes ao seu julgamento. Naquele primeiro dia do teatro de Ana, Rarlet sentara naquela mesa do Lico tomando cerveja escura e amarga, uma das suas várias bebidas preferidas, naquela hora em que as coisas já se encaminharam, as garotas dançando com os homens do dia e servindo bebidas, enfiadas em micro-vestidos colantes, shorts jeans rasgados, mínimos e abrindo ângulos tórridos de visão das bundas duras e livres, shortinhos ora largos e displicentes, ora bem cortados e quase colegiais; vestidos leves e mínimos, de alcinhas caindo, barras evasiés esvoaçantes como cortinas curtas de voal em janelas com calcinhas bunda adentro entre cheiros e umidades cuidadosamente perfumadas, botas pretas de cano alto, peitos saltando em decotes de meia-taça, cabelos compridos escorrendo em silhuetas de dorsos empinados por lordoses de ofício.
De tempos em tempos, garotas quase nuas dançando em uma barra cilíndrica de alumínio, fixada no centro de um palco colocado no canto oposto ao da mesa do Lico, em uma diagonal traçada da extrema esquerda ao fundo do bar, a mesa do “candidato”, como os estivadores o chamavam, do lado da entrada, discreta e distante do fervo. "Que deu em ti, Rarlet, pra inventar essa velha agora, sem pé nem cabeça, doida?", dissera ele surpreso e irritado, como ficava quando o problema era importante porém ínfimo, quase banal. Já se o caso fosse de proporções municipais ou maiores ainda, como os grandes problemas políticos nacionais e de vários outros países daquele tempo, Licurgo deslizava com naturalidade para uma atitude calma, irônica e discreta, como um entendido capaz de decidir. A bugra atriz tinha dito coisas pra ninguém entender, ali no palco, no começo de uma noite fraca e um tanto vazia, uma ladainha de louca de rua, sobre uma tal menina falando segredos sozinha e depois música de criança cantada por ela como velha em procissão…uma cena estranha e inesperada a deixar os poucos homens presentes e as putas surpresos. As mulheres mesmo estranharam, umas riram, outras amarraram a cara, antevendo. Rarlet sorriu quase nada ao beber um gole bom e passar a língua nos lábios antes de explicar ao Lico: "ela tá pagando, é só uma noite, das mais fracas, entra mais um dinheiro, e é um teatro, uma coisa nova para atrair gente.  Dona Ana, o nome dela, e o preço é bom, tô deixando ver o que acontece. Sempre posso dizer que assim ou assado não quero e ela vai ter que mudar. Vamos vendo... “. O Lico respondeu, "Tu  perguntou o nome todo dela? De onde vem?", o candidato era um investigador desconfiado, "parece louca", disse. Ao que a cafetina respondeu ser certamente uma hiponga de cidade grande, pelo sotaque do extremo sul do Brasil, uma daquelas tantas mulheres mais velhas e cansadas de tantas aventuras vividas, aquelas que vinham para a beira do mar sozinhas e acabavam se enfiando em um dos tantos centros exotéricos e religiosos que havia naquela região. Era provavelmente uma atriz fracassada,  o teatro uma brincadeira para a mulher se distrair. ” Não parece brincadeira, parece uma charada idiota, uma tristeza de mulher velha, um papo de doente mental”, falou Licurgo, ao que a dona respondeu, dura: "ela está pagando, aqui todo mundo paga e quase nunca é bem uma brincadeira e eu falo com ela para acertar o que pode e o que não pode ser".
                              Durante a conversa de Halê com o candidato (naquele lugar todos tinham apelidos, às vezes mais de um), Ladisleine dançava na barra um “pole dance” lânguido, quase triste, também pensando nos sentidos possíveis para a fala da velha, a tal Ana, aquele teatro mais parecendo brincadeira de criança solitária com suas bonecas; a Leine com seu corpo perfeito de Cinderela, de modelo, de miss, pele e cabelos dourados, olhos amendoados e cor de mel claro; a Leine fria e quieta, distante sempre, não fazia amizade com as outras, dava uns sorrisinhos enigmáticos e ausentes, respeitada e invejada por todas por ser a mais cara, mais valiosa, mais jovem e possuidora de uma atitude estranha, parecendo desprezar tudo aquilo, tudo no mundo, toda a vida  de todos ali. Dançava pensando na atriz: de repente a velha fora parar no palco, arrastando umas tralhas, uns panos, sacolas, uma boneca barbie amarrada em uma faixa enrolada do ombro ao outro lado do quadril; dona Ana sentara-se no chão do palco, pernas cruzadas, com as coisas a sua volta. Rarlet, como combinado com a velha, mandara apagarem as luzes, menos aquela na base do palco. A velha havia demorado tempo demais, ali parada, imóvel, os outros já preocupados. E quando todos já estavam olhando demais, focados, falara: "Nunca entendi como ele conseguia fazer aquilo, como naquela festa de natal, a família inteira reunida e circulando em uma confusão de senta e levanta, alcança bandejas de salgados e doces, enche e esvazia copos, risadinhas e vozes de todo o tipo e ele me olha, então, em um rápido instante em que ficamos sós em meio a todos, como se os outros estivessem em outro mundo, outro plano paralelo, súbito só eu e ele, sem testemunhas, e ele empurra sorrateiramente uma pequena barra de chocolate tirada do bolso de seu paletó, empurra na mesinha do canto, olhando pra mim daquele modo cúmplice e safado que me dava nojo e medo, e eu sorrio fingindo gostar, colaborar, e ele diz baixinho, 'pra ti', e eu pego o chocolate e guardo no bolso do casaco. Aquele 'pra ti' nojento". Ai, a velha silenciou, passou a mão na boneca, lentamente, e continuou: "Todos não vendo como se vissem e nos deixassem a sós, como se fosse um direito dele ter esse plano de vida só comigo, como uma lei, a mim só restando fingir gostar, um fingimento cheio de medo e nojo escondidos em meu sorriso de menina que seduz todos os homens do mundo". Dona Ana havia encenado, falando ora como quem conta história pra criança dormir, ora como uma batuqueira das mais fortes baixando preto velho. Ela falou tudo aquilo e desembestou logo, direto, em uma musiqueta cantada com voz de sertanejo antigo: "Terezinha, de Jesus, deu-se a queda e foi ao chão, acudiram três cavalheiros, todos os três de arma na mão…o primeiro foi seu pai, o segundo seu irmão, o terceiro foi aquele…”. E a velha parou naquele ponto da música, naquele “aquele”, deixando o tal aquele sumir aos poucos como um mantra budista, de olhos serrados, apertando a boneca no peito, a susie pelada e de cabelos loiros desgrenhados, segurando a voz sumindo um tempo de causar surpresa e chamar atenção, e súbito levantou e saiu do palco, agarrada nas tralhas, de cabeça baixa, envolvida em um sumiço abrupto. Indo embora sem se despedir de ninguém, mesmo porque ninguém a conhecia; só pegando e saindo porta afora. Leine dançava absorta, pensando em toda a cena da velha, pensando na velha, e em dúvida sobre o que pensar.
Licurgo, lá no seu canto, ficou não gostando daquilo. Rarlet, curiosa, iria conversar com Ana, saber seu nome, ver por onde a mulher já não tão nova e com aquela trança grisalha desejava ir. Leine dançava enroscada na barra de alumínio uma dança lenta, alongada, luxuriante pensando em Terezinha, a Terezinha da dona Ana, as terezinhas tantas, tão meninas dos homens do mundo.

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