A Beleza de Irene - Fernanda Torres e eu




Fernanda Torres e eu

Diferentemente de Fernanda Torres[1], fui cuidada por babás e empregadas domésticas que vinham e iam embora, além da mãe e da vó, sem ter nem de longe o sex appeal de Irene, retratada por Fernandinha como portadora da beleza de uma tela de Di Cavalcanti[2], ou um texto de Jorge Amado[3]. Minha mãe trabalhava quarenta horas semanais em duas escolas diferentes e distantes entre si. Deslocava-se, sempre aflita e rápida, em um fusca branco, 1961, considerado como do meu pai no enredo familiar. Ela só foi ter “o seu primeiro carro” em 1973, uma brasília amarela, lembrança a me amolecer de orgulho por ter uma mãe possuidora de uma brasília idêntica à dos Mamonas Assassinas que meu filho tanto amava.
Memórias pessoais são veracidades delicadas e não se prestam a apressados julgamentos teleológicos e partidários. Elas mostram não só um olhar sobre um acontecimento como também a potência de rastros de época, signos de um tempo histórico presentes no discurso individual, ainda que embutidos em valores sempre afirmativos do indivíduo que conta a sua história. Por isso, memórias são acontecimentos sagrados e não se deve proibir e nem inibir as pessoas de tê-las, ao contrário, as experiências de auto-análise, tanto no campo da teoria psicanalítica, quanto no campo das tradições da adivinhação sincrônica (búzios, cartas de tarô, mapa astral) valorizam o contar da experiência pessoal como procedimento organizador de releituras consoladoras.
Meu pai aposentou-se como juiz do trabalho, mas naquela época era servidor público de nível médio, depois de ter sido bancário. O dinheiro era curto para três filhos pequenos e as empregadas domésticas que passaram por nossa casa eram muito mais desvalidas do que a grande e mitológica Irene, ajudante de Fernanda Montenegro, um ícone da dramaturgia brasileira. Lembro-me da Loveli, de aparência mestiça entre negro e indígena, para não dizer bugra, o que talvez fosse pejorativo, não obstante signifique herético, o que seria um elogio para quem quisesse se ver como contrário aos ditames das filosofias poderosas. Aos meus olhos de criança ela era quase muda e, um dia, apareceu grávida de um policial militar. “Como foi isso(!), Loveli?”, “tomei guaraná com um brigadiano num bar”, balbuciou a bugra apavorada e, depois de um tempo, foi-se embora, levada por uma tia. Antes dela a Jussara, negra escura e mais velha, sábia e silenciosa. Segundo minha mãe, a Jussara deu-me um fogão de brinquedo, comprado com seu parco salário, por pena de mim. Nunca me contaram o porquê dela apiedar-se tanto de (ou por) uma guriazinha de olhos verdes e quase branca, uma mestiça branca, com jeito requebrado de negra clara, aquela que por tradição dança seminua nas escolas de samba.  Minha mãe e minha tia viviam me dizendo: “deixa de ser exibida, guria”. Tanto fizeram isso que eu acabei me convencendo de ter enormes chances de causar “furor onde quer que passasse” [4] e, já adolescente, eu desejava andar pelas ruas ouvindo “os homens uivando, ganindo, gemendo” [5], fossem obreiros ou engravatados. Lamentava-me, aos quinze anos, de ter ombros largos e corpo de jogadora de vôlei, o que eu queria era ter um corpo de Sônia Braga, a Gabriela do Armando Bogus.
Uma vez, nos idos de 1993, quando Itamar Franco havia substituído Fernando Collor de Mello (para o deleite de quem achava fantástico e delicioso derrubar rapidinho um presidente eleito) eu e um namorado pegamos carona em um ônibus vazio, perambulando pelas praias de Santa Catarina. O motorista era um negro enorme, musculoso e sarado, e muito escura parecia a sua tez suada. O cara viu que eu me impressionei com ele, mesmo sem olhar para mim e falou: “o que elas gostam mesmo é de um negro lorde”. Eu me alvorocei por dentro, sem dar bandeira para não chamar a atenção do namorado colocado, sei lá porque, uns bancos atrás da conversa. Ao lado daquele semideus, sentia furores internos.



 Mais tarde, já meio velha, eu queria ser Rihanna, a negra clara de olhos verdes e feminista, gostosona como uma deusa, e fazer um séquito de homens uivarem quando eu passasse. Mas, quando jovem, eu era só uma grandalhona de ombros largos embora fosse mestiça de negro com índio e branco e tivesse uma ginga a fazer um professor de “História da Cultura Brasileira I”, na primeira aula em um ano do no curso superior de História da federal gaúcha apontar para mim, no meio de uns vinte alunos sentados na sala, dizendo: “ela, por exemplo, é mestiça”. Ele nunca tinha me visto, não sabia quem eu era e apenas mostrara que meu corpo se impunha à cadeira como se esta fosse um sofá do pintor Di Cavalcanti, diferentemente de uma colega de etnia alemã, sentada reta e ortopedicamente sobre sua cadeira dura. Em muitas histórias de amor ou de sexo, na minha vida, senti-me como sendo uma negra clara. Fui tratada como tal em muitos momentos da minha atividade política juvenil e, sinceramente, o que me doeu, quando fui desprezada ou desvalorizada por militantes de esquerda, foi o demérito de meus direitos à manifestação e expressão, não a percepção de imagem que eu despertava. Como disse o motorista negro lindo, eu gostaria de sido uma mulata marquesa, com grana suficiente para ser quem eu quisesse e trabalhar com o que eu desejasse. Não vejo o problema na palavra “mulata”, que foi ressignificada mil vezes em territórios simbólicos, em nosso país, e, mesmo em tempos de escravidão no Brasil Império poderia significar um poder maior e uma chance de alforria e inserção social mais valorizada.
Lembro-me agora da galhardia dos colorados (torcedores do super campeão time gaúcho de futebol, o Internacional) quando gritavam, e eu e meu filho no meio, “ahhh... eu sou macaco!”, em resposta às comparações que os gremistas faziam da suposta negritude de tradição da nossa torcida, negritude que nos orgulhava enormemente naquele grito, no qual o macaco passava a ser um símbolo gracioso e ágil. Sim, entendo, a mula carregava peso e era um animal de carga e dela, seu nome, surgiu a palavra mulata[6]. Mas, veja bem, porque devemos aceitar o pressuposto de que aquilo que é híbrido, mestiço, é ruim? Novamente, o herético como um fora do etnocêntrico, tendo todos nós que cerrar fileiras em torno de denominações higienistas e disciplinadoras, tais como o tão ironizado, popularmente, “afro-descendente”? Por que essa moda de apagar determinados relatos históricos, narrativas, memórias, em nome de um contar padronizado da história, como se esta fosse, ela mesma, um devir a ser higienizado pelos gestores de um mundo devidamente sob controle? Impressiona-me a dimensão de algumas cartas, no tarô da política brasileira, quando as coloco juntas sobre a mesa: os funcionários públicos passam a ser nomeados como “vagabundos”, em meados de 1990, sendo que essa pecha apenas foi expandida nos governos de Lula, e não faltaram sindicalistas petistas para repetir esse refrão, não só sobre os servidores do judiciário, legislativo e executivo, mas também sobre as professoras e professores que reclamavam dos baixos salários; logo estes setores começaram a ser tratados como mulas de carga, os servidores diante dos processos violentos e experimentais de implantação de máquinas e programas de informatização dispendiosa e sem planejamento; agora, a negra clara não pode ser chamada de “mulata” porque a origem da palavra vem das mulas. Tratar brasileiros como mulas pode, em nome de uma produtividade tão elogiada pelos gestores de todos os presidentes pós-ditadura militar, mas ouvir um nome que ninguém mais se lembra ou sequer soube algum dia que vinha da herança das burrinhas de carga (e o problema não eram as mulas, mas as cargas), não pode. Uma nova censura de discurso e de memória floresce.


Mas voltando ao texto da Fernandinha, a mitologia da minha família está mais para um romance de Victor Hugo ou William Faulkner do que para o encanto retratado, a partir da sua linda babá Irene. Por essa cacofonia e esse eco – as diferenças e as semelhanças de minha vida de criança com a da Fernanda Torres – e por ter ficado triste com o modo cruel como alguns setores do feminismo brasileiro se referiram a ela e a seu texto no blog “Agora é que são elas” da Folha de São Paulo, forçando-a a um pedido de desculpas (não obstante o tom satírico do “Mea Culpa” [7]) trago aqui uma série de capítulos que compõem um texto chamado “A beleza de Irene”, do qual este é a introdução. Não será uma hercúlea e indefectível análise douta, mas registre-se, por dever de ofício, que se trata de uma tentativa de fala com cunho historiográfico e que eu (a muito custo e sacrifício, estudando à noite, deixando o filho em casa com a babá mestiça que estudou e virou carteira, a Márcia) sou mestre em História do Brasil, não obstante ter trabalhado como uma (mula? moura?) operária de indústria têxtil inglesa do século XIX, durante minha carreira de servidora pública brasileira, estando agora aposentada e disposta a defender, valente, o direito à memória – individual e coletivo –, e suas falas cacofônicas, híbridas e delicadas, como um direito inscrito nas cláusulas pétreas da Constituição brasileira.





[1] http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2016/02/22/mulher/
[2] Duas Mulatas, quadro de 1962 do pintor brasileiro consagrado; Mulata no Sofá, 1973, idem e uma série enorme de mulheres, sempre mulatas, a ressignificar a palavra com um conteúdo de semi-deusas.
[3] Gabriela, Cravo e Canela, o romance de Jorge Amado que imortalizou Sônia Braga na pele de uma mestiça lindíssima, hipnotizadora do comerciante turco Nacib que padece por ela. O turco na pele de Armando Bogus  muito mais do que na pele pouco erótica de Marcello Mastroiani, em uma fase já mais cansada de suas interpretações de galã.
[4] Idem, em “Mulher” de Fernanda Torres, no blog “Agora que são elas” da Folha de São Paulo, fev, 2016.
[5] Ibidem.
[6] Stephanie Ribeiro e Djamila Ribeiro  em http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2016/01/29/a-mulata-globeleza-um-manifesto/ “Para começar o debate em torno dessa personagem, precisamos identificar o problema contido no termo “mulata”. Além de ser palavra naturalizada pela sociedade brasileira, ela é presença cativa no vocabulário dos apresentadores, jornalistas e repórteres da emissora global. A palavra de origem espanhola vem de “mula” ou “mulo”: aquilo que é híbrido, originário do cruzamento entre espécies. Mulas são animais nascidos do cruzamento dos jumentos com éguas ou dos cavalos com jumentas. Em outra acepção, são resultado da cópula do animal considerado nobre (equus caballus) com o animal tido de segunda classe (equus africanus asinus). Sendo assim, trata-se de uma palavra pejorativa que indica mestiçagem, impureza. Mistura imprópria que não deveria existir.

[7] “Mea Culpa” foi o texto que Fernanda Torres (ou suas editoras) publicou na mesma página, após ter sofrido um “linchamento virtual” nas redes sociais, efetuado pelas feministas ligadas a espaços discursivos bem organizados e com alta visibilidade – leia-se partidos políticos, centros universitários, mídias de bom alcance.

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