Uma vez, quando eu era
professora, dei uma aula que as crianças de dez e onze anos adoraram. Chamei de
“aula chata”. Falei para elas aguentarem uma aula bem longa e expositiva minha,
na qual eu escreveria algumas frases no quadro verde. Falei: “vocês vão ficar
com sono e chateados, então eu quero que vocês comecem a anotar no caderno
somente as palavras que mais chamarem a atenção, ou porque gostaram dela, uma
palavra bonita, ou porque não gostaram, uma palavra feia ou incompreensível.
Fiquem fingindo que estão atentos, mas somente se liguem em palavras que se
destacarem no que eu estiver falando”. Eles adoraram a brincadeira e
imediatamente se colocaram a postos para brincar. No outro dia, entrei na sala
de outra turma e estavam todos faceiros quando um perguntou: “você vai dar a
aula chata pra nós, professora”? Algumas professoras provavelmente não gostaram
da minha brincadeira. Depois, as crianças precisavam trazer uma redação, na
aula seguinte, com um texto composto com as palavras que elas haviam
selecionado e copiado.
Pois bem, li a postagem do Jean
Wyllys, sobre o que eu chamei de “a batalha dos frigoríficos”, e imediatamente
me lembrei da aula chata. Foi daí que marquei os seguintes recortes, em um
grande texto do deputado de esquerda:
“aumentar seus lucros sem aumentar a produtividade ou a
inovação”
“corrompendo funcionários públicos”
“incompetência para fiscalizar as irregularidades”
“os reais interesses das bancadas do boi, da bala e da
bíblia, articuladas em uma série de retrocessos para o país”
Fiquei um tanto chocada porque
sei que a produtividade e a inovação estão sendo utilizadas, mais ainda da
década de noventa pra cá, mas desde sempre, contra os operários e operárias. A
produtividade não tem sido construída pela adoção de máquinas mais eficientes,
ao contrário, a adoção de máquinas novas acaba criando um cenário inaugurador e
sem lei onde os subordinados se veem em situação de neo-escravismos, com
adoecimentos e mutilações de novos formatos, a começar pelos perigosos índices
de depressão, contidos por adições químicas criadas pela indústria farmacêutica
de última geração, incapaz de inibir os índices alarmantes de suicídio e
transtornos em populações jovens e adultas.
Depois, a ideia simplória de
corrupção, e ainda de funcionários
públicos, como erros exteriores à engrenagem econômica e praticados por
comportamentos desviantes de uma normalidade suposta como um bom padrão. Depois
a ideia de “incompetência” e “irregularidades” para identificar um
acontecimento dentro do qual está deixando de entrar no mínimo 74 milhões por
dia, no país, sem falar na projeção de um fracasso generalizado da indústria de
carnes processadas dentro do Brasil e o consequente e futuro desemprego em
massa. Confesso que fiquei besta. Tirando a última frase, sobre a bancada boi,
bala e bíblia, o resto é idêntico à fala que a Marina Silva fez sobre o mesmo
acontecimento. Uma fala que em nada se opõe à condução da lavajato pelo modo
operacional e cognitivo de uma vertente do conhecimento jurídico, o Direito,
representada no país, até agora, pelo juiz que dizem que está por sair da
condução desse processo, o Moro.
Sou uma Cassandra, isto é,
aprendi desde a mais tenra infância a não acreditar em nenhum outro humano e a
olhar o mundo com meus próprios olhos. Deriva desse modo fóbico e febril a
condição de usar frequentemente o pensamento contra-intuitivo e recortar os
cenários a partir de bricolagens pré-cognitivas, ou seja, acreditando mais em
entendimentos inventados pela minha especifica subjetividade do que naquilo que
os sacerdotes oficiais escrevem em seus papiros e tábuas. Eu brinco com as palavras de um modo autônomo
desde o primeiro vovô viu a uva. Foi isso que ensinei às crianças, nos idos de
1997.
A vantagem desse comportamento
intuitivo e criativo é que, em situações de esculhambação generalizada de quem
deveria ocupar o lugar –lacaniano- do “pai”, o lugar do discurso crível, a fala
e a escrita de quem se pode seguir, o praticante desse comportamento autônomo
pode ser virar para entender o mundo sozinho, sem sofrer tanto em cenário de
abandono.
Eu não vou nem falar aqui de uma
outra postagem que vê o Moro como um malvado, também incompetente, que sairá
como que “guilhotinado”, como se o que vem agora antecedesse o surgimento de um
Napoleão qualquer. Eu não li o 18 de Brumário, mas imagino o que pode estar
escrito lá somente por uma vivência prática sobre a frase famosa do Marx.
Tentando consolar meus amigos
mais próximos, vou dizer o seguinte: quando alguém chegar perto de você falando
essas palavras chaves: “competência”, “produtividade”, “inovação tecnológica”, “corrupção”,
“irregularidades”, sorria e finja que está ouvindo todo o restante do discurso
da pessoa. Depois caia fora, discretamente, e procure a sua turma, nem que ela
tenha apenas meia dúzia de humanos, entre crianças e velhos. Mas, olha, se
mesmo com tudo isso, esse caos político, as turmas todas de uma suposta e
indescritível esquerda brasileira conseguirem entrar na fase dois desse game
mundial, saindo do golpe contra a Dilma, e se a gente puder seguir vivendo,
pensando e fazendo redações com as palavras chaves que lemos e ouvimos, “tamo”
no lucro. Porque, sinceramente, eu nunca vi uma degradação simbólica dessas
proporções. Começo a lembrar de um texto inteiro, sobre o qual não é necessário
defender-se e ficar recortando palavras-chaves. Trata-se de Franco Berardi,
quando ele diz:
“A comunicação alfabética possui
um ritmo que permite ao cérebro uma recepção lenta, sequencial, reversível. São
estas as condições da crítica, que a modernidade considera condição essencial
da democracia e da racionalidade. Porém, o que significa “crítica”? No sentido
etimológico, crítica é a capacidade de distinguir, particularmente, de
diferenciar entre a verdade e a falsidade das afirmações. Quando o ritmo da
afirmação é acelerado, a possibilidade de interpretação crítica das afirmações
reduz-se a um ponto de aniquilamento. McLuhan escreveu que quando a
simultaneidade substitui a sequencialidade — ou seja, quando a afirmação se
acelera sem limites — a mente perde sua capacidade de discriminação crítica,
passando daquela condição a uma neomitológica. O verdadeiro problema é que as
mentes individuais e coletivas perderam sua capacidade de discriminação
crítica, de autonomia psíquica e política”.
Volto, então, a chamar a atenção
dos amigos para a necessidade de refletir sobre a ideia de “quilombos psíquicos
e cognitivos”, ou seja, arcas de noés de gente que detém duas qualidades: não é
dono de capital e não desistiu de pensar criticamente. Eu heim...vade retro...
Espertíssimo!
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