Querida Zeferina - carta 10.1 - O fim do direito moderno


                                        Querida Zê,

                             Agora, aquela contra-intuição do feminismo sem nome e sem fala. Este feminismo comum e milenar tão diferente das falas oficiais das mulheres famosas, este feminismo da fofoca sempre combatida e que providencia solidariedades entre sofredoras, mas de modo algum mergulha nessa tal sororidade obrigatória e disciplinadora do comportamento das mulheres obedientes às determinações das grandes mídias, das grandes palavras de ordem. Agora, esta contra-intuição sempre subversiva poderia integrar uma nova epistemologia capaz de construir um novo direito das gentes comuns, um direito natural defensivo capaz de defender todos os frágeis e humilhados pelos mais rápidos, mais ágeis e mais mandantes. Mas isso precisaria ser muito bem pensado e explicado, os conceitos descritos em movimentos complexos para que se pudesse identificar até mesmo aquela rapidez e agilidade da mulher gueixa que manda em outros como uma representação de seus tutores, da nobreza a quem serve. Seria preciso descrever com acurada precisão quem afinal são as “gentes comuns” para finalmente conseguir erguer um direito que pudesse homenagear o Lula e a Dilma, ao menos em suas trajetórias de luta democrática, em oposição ao direito do juiz Moro, mesmo ao considerar os fracassos evidentes daqueles dois, justamente talvez sabendo perdoa-los naquilo que os presidentes representantes da esquerda brasileira depois da ditadura militar manifestaram como impotência.
                           Agora, há pouco tempo, estou vivendo num mundo que assiste ao seu próprio fim e de um modo incrivelmente acelerado. Nós mesmos, os mais velhos, já participando, desajeitados, de uma organização de lógicas do viver onde cada vez menos pessoas reclamam do tanto que tudo isso se parece com um quadro de Hieronymus Bosch, onde o sofrimento indescritível fica no quadro ao lado do piquenique da aldeia sonâmbula onde ninguém olha para ninguém. Há um problema de pânico ou de êxtase generalizados produtores de solidão como pandemia e perda de entendimentos comuns dentro de uma mesma linguagem. Há um dessoramento da linguagem comum, uma anemia, uma perda de importância dos sentidos e, portanto, uma ausência progressiva do pertencimento. Estamos nos tornando cada qual uma singularidade à deriva, medievais, enclausurados e coisificados pelas estatísticas. Vejo uma televisão tanque de guerra arremessando mísseis, mostrando polícias por todos os lados e gente apanhando, sendo presa, baleada, perseguida, “apreendida” como “elemento”, como os escravos descritos e desenhados nos troncos, nos livros escolares dos tempos em que era tão romântico ler livros. Agora, vejo essa aura de reverência ao grande romance perder sua força, a evidência de que chegar a uma visibilidade de escrita é um poder que poucos têm e não sem pagar algum preço, não sem manifestar desde o começo do desejo de escrever a adesão a um grupo político que consiga ter influência em mídias grandes e médias, influência em esferas de gerenciamento de instituições de produção cultural. Em resumo, tudo virou mercadoria de consumo, avatares, algoritmos voando em um tecido de sociabilidade explodida em fragmentos. Tudo virou discurso de sustentação de algum tipo de aristocracia. E a existência de aristocracias de esquerda, elegantes núcleos de preservação do socialismo derrotado, ainda se mantém legalizada ao lado da proliferação de direitas de novos e arcaicos tipos. Cresce um discreto medo de que venha a surgir uma nova escravidão, um inaugural sistema de castas, um inevitável apartheid do contingente humano que jovens teóricos chamam, tranquilamente, de o “homem inútil”. Isso são ingredientes dessa nova barbárie do final do século vinte e início do vinte e um e é nesse cenário de fragmentação de uma hegemonia cultural iniciada no renascimento europeu, lá por volta de mil e trezentos depois de Jesus Cristo, que a figura do livro de sobrevivência resgata antigas cenas de alquimistas medievais. Escrevo como refugiada, Zeferina, desejando atar vínculos de esperanças entre os que ainda não enlouqueceram neste mundo meu e os que conseguirem passar por esse fim de mundo no qual vivemos. Como se jogasse garrafas lacradas ao mar, o mar virtual das redes sociais, desejando que alguém as encontre um dia, leia e pense: então era assim que eles sofriam e que tentavam viver e inventar soluções para seus problemas.
                                Mas se nesse mundo terminal, temos o direito do domínio do fato, tal como lemos nas redes sociais no Brasil, que é o direito do juiz Moro, da polícia federal, dos grampos, das escutas e dos escândalos nas televisões, qual seria o direito do Lula? Sob que direito o Lula estaria preservado como principal líder de multidões no Brasil? Esse direito do juiz Moro seria algo assim: o fato aparece como um desenho em um quebra-cabeça de indícios e quando o juiz vê o fato, um domínio se estabeleceu, mesmo que faltem peças materiais objetivas que provem uma culpa. Então seria a presença de um fato visível como ideia a partir de fragmentos. O fato que eu conseguia ver, Zeferina, é o de que o PT era o único partido que precisava ser cassado de sua capacidade de influência no cenário político. Os demais acusados, de outros partidos políticos, nos processos ligados à investigação chamada de lavajato, não levavam junto seus grupos políticos, seus partidos, para o lugar de punição.  Agora, surgiu um fato novo, com novas denúncias e grampos acusando o senador Aécio Neves e o presidente Temer, e ele carrega a sensação de que todo o conjunto das instituições políticas brasileiras está a naufragar. Talvez porque outro fato domine a cena, e ele seria a necessidade de cassar de seu lugar de poder o conjunto normativo erguido na modernidade republicana, no Brasil e no mundo. Finalmente podemos concluir - pelo domínio do fato - que o Partido dos Trabalhadores liderava durante quatro mandatos presidenciais, no governo, a proteção à CLT, as ideias de ênfase do princípio jurídico da proteção do hipossuficiente, a Constituição dos direitos humanos individuais iguais para todos. Então o domínio desse novo direito surge por uma configuração de fatos novos dominantes no mundo atual, todo ele. Todos os grandes acontecimentos na história humana sempre estiveram ligados a invenções tecnológicas: o domínio do fogo, do metal, a invenção da escrita, a bússola, as caravelas, as máquinas a vapor, a eletricidade, a mecânica, o petróleo. Então o fato novo é a mais recente revolução da informática carregando consigo novas tecnologias em diferentes áreas e precisando deixar em aberto até mesmo as possibilidades de vários tipos novos de escravidão, a começar pelo trabalho obrigatório de apenados nos grandes presídios de predomínio de populações negras, pobres e abandonadas desde as gerações de seus pais e avós. Outras e novas escravidões como a de jovens operadores de telemarketing, de costureiras domésticas, de cortadores de pedaços de carne de frango ou de gado, todos presos em sistemas cruéis de trabalho forçado e sem direito a contrato protegido por leis de domínio público.
                                       O PT e seus aliados próximos ou mais distantes, ao defenderem as normas construídas no século vinte, estavam travando a liberdade dos gestores desse novo mundo de novas lógicas. E fizeram isso defendendo os direitos escritos modernos, os direitos das normas e decisões jurídicas escritas, dos códigos, das constituições, todos eles erguidos a partir dos acontecimentos inaugurados pelas revoluções burguesas do século XVIII. Contra essa tradição, nasce o direito do domínio do fato, sendo que os fatos aparecem em uma sucessão de problemas inéditos, tecnologias novas e populações humanas envolvidas em tragédias sem precedentes, como a ruptura da barragem do depósito de lixo de mineradoras, em 2015, e a contaminação dos rios a partir da cidade brasileira de Mariana, em Minas Gerais, Brasil. Parece então, Zeferina, que a esquerda brasileira defendia um capitalismo que está morrendo, se decompondo, enquanto os seguidores, aliados e admiradores do juiz Moro defendem  uma profusão de grandes novidades. Isso do julgamento do Lula nas telas das televisões e nas redes sociais, a partir de seu depoimento perante o juiz Sérgio Moro, esteve parecendo um tipo de assalto revolucionário ao poder, uma espécie de “período de terror” acionado para prender um conjunto de inimigos deste novo poder que irrompe e silenciar uma determinada versão, mais antiga, dos fatos. Agora, entramos em uma nova fase, na qual parece que tudo desaba, não mais apenas o Lula e seu partido, agora toda a política parece uma cena de filme noir de mafiosos americanos da década de trinta do século vinte. Parece então que isso vai se impor, aos poucos, aos saltos, lenta ou repentinamente e teremos o início de um novo mundo jurídico. Mas nada indica que nesse novo mundo teremos apenas um modelo de pensamento, teoria, sobre o direito de todos e de cada um, direitos dos humanos, dos seres vivos e das coisas tocadas por eles.
                       Penso, Zeferina, em um direito natural defensivo, uma produção de entendimentos sobre direitos a se realizar a partir das memórias de longa duração que se mantiverem dentro das comunidades humanas, dentro dos cérebros de muitos dos seus membros que passarão essas memórias de geração em geração. Chamo de natural esse direito porque ele brotará, penso eu, de ideias irrefutáveis e muito mais consolidadas do que esses fatos voláteis das lógicas camaleônicas do mundo atual. Ideias tais como bem viver em comunidade, felicidade individual, liberdade individual e de grupos, saúde dos corpos e das mentes, são ideias que movimentaram todos os tempos humanos, todas as histórias vividas pela humanidade. Natural no sentido do que é próprio de um ser, daquilo que poderia vir com ele enquanto ele nasce e cresce, se não for humilhado. Chamo de defensivo porque, pela primeira vez na história da humanidade, esse direito tende a aparecer não como uma potência que impõe uma novidade, um desejo, uma invenção, não mais como um conjunto de ideias utópicas ou inscritas em um campo filosófico revolucionário de novos atores sociais, mas como um conjunto de acontecimentos movidos por urgências imediatas de sobrevivência da espécie humana sapiens. É um direito natural defensivo porque nós estamos ameaçados de extinção, Zeferina. Então esse ser natural desse direito seria um conteúdo a predominar na história desta humanidade ameaçada e, portanto, seria um direito historicista, a encontrar um domínio de uma história humana, uma consciência coletiva  sobre direitos de todos e de cada um.
                               Penso sobre esse direito das gentes comuns desde 1994, quando comecei a estudar e escrever sobre histórias da Justiça e do Direito do Trabalho no Brasil. Lá, eu estudava sobre as histórias do escravismo no país, sobre as perversidades nas Casas Grandes & Senzalas, sobre os hibridismos entre violência e confraternização. Estudava sobre a lei da despedida injusta de 1935. Agora, estou voltando àqueles escritos e pensando sobre um novo direito para opor ao direito inaugural do Moro, para superar o direito moderno que a esquerda insiste em proteger e para defender nosso direito ao próprio corpo. Neste momento histórico, não mais as “mulheres inessenciais” descritas pela Simone de Beauvoir, agora os “homens inúteis” falados por jovens autores, como o Yuval Noah Harari. Agora, os homens terão que aprender a exercer uma contra-intuição, como as mulheres diferenciadamente audaciosas sempre fizeram desde o surgimento do primeiro domínio patriarcal. Agora, quando a mulher começava a deixar de ser coisa para os homens, começamos a ver toda a humanidade mergulhar em um domínio de fatos que conduzem os seres vivos a mais degenerada coisificação. Agora.




Imagem da web - Ulisses Guimarães, presidente da assembléia nacional constituinte no Brasil, em 1987. Em 1988 a nova Constituição foi promulgada. A segunda versão da carta 10.1 foi publicada com texto modificado dados os novos escândalos políticos, modificado o título e a imagem para tentar fazer passar a publicação anterior vetada pela gerência do facebook na fanpage do liberta master. Depois de duas comunicações aos gerentes do facebook, a segunda manifestando um grande descontentamento, a página foi liberada novamente para divulgação após quinze dias sob censura.

Querida Zeferina - carta 10.1 - O direito moderno, o domínio do fato e o direito natural defensivo

                               

                             Querida Zê,

                             Agora, aquela contra-intuição do feminismo sem nome e sem fala. Este feminismo comum e milenar tão diferente das falas oficiais das mulheres famosas, este feminismo da fofoca sempre combatida e que providencia solidariedades entre sofredoras, mas de modo algum mergulha nessa tal sororidade obrigatória e disciplinadora do comportamento das mulheres obedientes às determinações das grandes mídias, das grandes palavras de ordem. Agora, esta contra-intuição sempre subversiva poderia integrar uma nova epistemologia capaz de construir um novo direito das gentes comuns, um direito natural defensivo capaz de defender todos os frágeis e humilhados pelos mais rápidos, mais ágeis e mais mandantes. Mas isso precisaria ser muito bem pensado e explicado, os conceitos descritos em movimentos complexos para que se pudesse identificar até mesmo aquela rapidez e agilidade da mulher gueixa que manda em outros como uma representação de seus tutores, da nobreza a quem serve. Seria preciso descrever com acurada precisão quem afinal são as “gentes comuns” para finalmente conseguir erguer um direito que pudesse homenagear o Lula e a Dilma, em oposição ao direito do juiz Moro, mesmo ao considerar os fracassos evidentes deles dois, justamente sabendo perdoa-los.
                           Agora, há pouco tempo, estou vivendo num mundo que assiste ao seu próprio fim e de um modo incrivelmente acelerado. Nós mesmos, os mais velhos, já participando, desajeitados, de uma organização de lógicas do viver onde cada vez menos pessoas reclamam do tanto que tudo isso se parece com um quadro de Hieronymus Bosch, onde o sofrimento indescritível fica no quadro ao lado do piquenique da aldeia sonâmbula onde ninguém olha para ninguém. Há um problema de pânico ou de êxtase generalizados produtores de solidão como pandemia e perda de entendimentos comuns dentro de uma mesma linguagem. Há um dessoramento da linguagem comum, uma anemia, uma perda de importância dos sentidos e, portanto, uma ausência progressiva do pertencimento. Estamos nos tornando cada qual uma singularidade à deriva, medievais, enclausurados e coisificados pelas estatísticas. Vejo uma televisão tanque de guerra arremessando mísseis, mostrando polícias por todos os lados e gente apanhando, sendo presa, baleada, perseguida, “apreendida” como “elemento”, como os escravos descritos e desenhados nos troncos, nos livros escolares dos tempos em que era tão romântico ler livros. Agora, vejo essa aura de reverência ao grande romance perder sua força, a evidência de que chegar a uma visibilidade de escrita é um poder que poucos têm e não sem pagar algum preço, não sem manifestar desde o começo do desejo de escrever a adesão a um grupo político que consiga ter influência em mídias grandes e médias, influência em esferas de gerenciamento de instituições de produção cultural. Em resumo, tudo virou mercadoria de consumo, avatares, algoritmos voando em um tecido de sociabilidade explodida em fragmentos. Tudo virou discurso de sustentação de algum tipo de aristocracia. E a existência de aristocracias de esquerda, elegantes núcleos de preservação do socialismo derrotado, ainda se mantém legalizada ao lado da proliferação de direitas de novos e arcaicos tipos. Cresce um discreto medo de que venha a surgir uma nova escravidão, um inaugural sistema de castas, um inevitável apartheid do contingente humano que jovens teóricos chamam, tranquilamente, de o “homem inútil”. Isso são ingredientes dessa nova barbárie do final do século vinte e início do vinte e um e é nesse cenário de fragmentação de uma hegemonia cultural iniciada no renascimento europeu, lá por volta de mil e trezentos depois de Jesus Cristo, que a figura do livro de sobrevivência resgata antigas cenas de alquimistas medievais. Escrevo como refugiada, Zeferina, desejando atar vínculos de esperanças entre os que ainda não enlouqueceram neste mundo meu e os que conseguirem passar por esse fim de mundo no qual vivemos. Como se jogasse garrafas lacradas ao mar, o mar virtual das redes sociais, desejando que alguém as encontre um dia, leia e pense: então era assim que eles sofriam e que tentavam viver e inventar soluções para seus problemas.
                                Mas se nesse mundo terminal, temos o direito do domínio do fato, tal como lemos nas redes sociais no Brasil, que é o direito do juiz Moro, qual seria o direito do Lula? Sob que direito o Lula estaria preservado como principal líder de multidões no Brasil? Esse direito do juiz Moro seria algo assim: o fato aparece como um desenho em um quebra-cabeça de indícios e quando o juiz vê o fato, um domínio se estabeleceu, mesmo que faltem peças materiais objetivas que provem uma culpa. Então seria a presença de um fato visível como ideia a partir de fragmentos. O fato que eu consigo ver, Zeferina, é o de que o PT é o único partido que precisa ser cassado de sua capacidade de influência no cenário político. Os demais acusados, de outros partidos políticos, nos processos ligados à investigação chamada de lavajato, não levam junto seus grupos políticos, seus partidos, para o lugar de punição.  Talvez porque outro fato domine a cena, e ele seria a necessidade de cassar de seu lugar de poder o conjunto normativo erguido na modernidade republicana, no Brasil e no mundo. Finalmente podemos concluir - pelo domínio do fato - que o Partido dos Trabalhadores liderava, no governo, a proteção à CLT, as ideias de ênfase do princípio jurídico da proteção do hipossuficiente, a Constituição dos direitos humanos individuais iguais para todos. Então o domínio desse novo direito surge pelo fato novo que é a mais recente revolução da informática carregando consigo novas tecnologias em diferentes áreas e precisando deixar em aberto até mesmo as possibilidades de vários tipos novos de escravidão, a começar pelo trabalho obrigatório de apenados nos grandes presídios de predomínio de populações negras, pobres e abandonadas desde as gerações de seus pais e avós. Outras e novas escravidões como a de jovens operadores de telemarketing, de costureiras domésticas, de cortadores de pedaços de carne de frango ou de gado, todos presos em sistemas cruéis de trabalho forçado e sem direito a contrato protegido por leis de domínio público.
O PT, ao defender as normas construídas no século vinte, estava travando a liberdade dos gestores desse novo mundo de novas lógicas. E o PT fez isso defendendo os direitos escritos modernos, os direitos das normas e decisões jurídicas escritas, dos códigos, das constituições, todos eles erguidos a partir dos acontecimentos inaugurados pelas revoluções burguesas do século XVIII. Contra essa tradição, nasce o direito do domínio do fato, sendo que os fatos aparecem em uma sucessão de problemas inéditos, tecnologias novas e populações humanas envolvidas em tragédias sem precedentes, como a ruptura da barragem do depósito de lixo de mineradoras, em 2015, e a contaminação dos rios a partir da cidade brasileira de Mariana, em Minas Gerais, Brasil. Parece então, Zeferina, que o PT defendia um capitalismo que está morrendo, se decompondo, enquanto os seguidores, aliados e admiradores do juiz Moro defendem  uma profusão de grandes novidades. Isso do julgamento do Lula nas telas das televisões e nas redes sociais, a partir de seu depoimento perante o juiz Sérgio Moro, está parecendo um tipo de assalto revolucionário ao poder, uma espécie de “período de terror” acionado para prender um conjunto de inimigos deste novo poder que irrompe e silenciar uma determinada versão, mais antiga, dos fatos. Parece então que isso vai se impor, aos poucos, aos saltos, lenta ou repentinamente e teremos o início de um novo mundo jurídico. Mas nada indica que nesse novo mundo teremos apenas um modelo de pensamento, teoria, sobre o direito de todos e de cada um, direitos dos humanos, dos seres vivos e das coisas tocadas por eles.
                       Penso, Zeferina, em um direito natural defensivo, uma produção de entendimentos sobre direitos a se realizar a partir das memórias de longa duração que se mantiverem dentro das comunidades humanas, dentro dos cérebros de muitos dos seus membros que passarão essas memórias de geração em geração. Chamo de natural esse direito porque ele brotará, penso eu, de ideias irrefutáveis e muito mais consolidadas do que esses fatos voláteis das lógicas camaleônicas do mundo atual. Ideias tais como bem viver em comunidade, felicidade individual, liberdade individual e de grupos, saúde dos corpos e das mentes, são ideias que movimentaram todos os tempos humanos, todas as histórias vividas pela humanidade. Natural no sentido do que é próprio de um ser, daquilo que vem com ele quando ele nasce e cresce. Chamo de defensivo porque, pela primeira vez na história da humanidade, esse direito tende a aparecer não como uma potência que impõe uma novidade, um desejo, uma invenção, não mais como um conjunto de ideias utópicas ou inscritas em um campo filosófico revolucionário de novos atores sociais, mas como um conjunto de acontecimentos movidos por urgências imediatas de sobrevivência da espécie humana sapiens. É um direito natural defensivo porque nós estamos ameaçados de extinção, Zeferina. Então esse ser natural desse direito seria um conteúdo a predominar na história desta humanidade ameaçada e, portanto, seria um direito historicista, a encontrar um domínio de uma história humana.

                               Penso sobre esse direito das gentes comuns desde 1994, quando comecei a estudar e escrever sobre histórias da Justiça e do Direito do Trabalho no Brasil. Lá, eu estudava sobre as histórias do escravismo no país, sobre as perversidades nas Casas Grandes & Senzalas, sobre os hibridismos entre violência e confraternização. Estudava sobre a lei da despedida injusta de 1935. Agora, estou voltando àqueles escritos e pensando sobre um novo direito para opor ao direito do Moro e para defender nosso direito ao próprio corpo. Neste momento histórico, não mais as “mulheres inessenciais” descritas pela Simone de Beauvoir, agora os “homens inúteis” falados por jovens autores, como o Yuval Noah Harari. Agora, os homens terão que aprender a exercer uma contra-intuição, como as mulheres diferenciadamente audaciosas sempre fizeram desde o surgimento do primeiro domínio patriarcal. Agora, quando a mulher começava a deixar de ser coisa para os homens, começamos a ver toda a humanidade mergulhar em um domínio de fatos que conduzem os seres vivos a mais degenerada coisificação. Agora.


Imagem da web - pintura de Hieronymus Bosch - Cristo carregando a cruz - século XV.

Querida Zeferina - carta 9.1 - Kant, Deleuze e a diferença entre o bacana e o comum

                 
                                                         

                                                      Querida Zeferina,


                                              A França acaba de entrar em uma necessidade de escolha entre o pântano e o precipício, sendo um problema ético a decisão sobre qual deles tende a ser o mais nefasto aos ideais dos “direitos humanos iguais para todos”, qual dos candidatos – Macron e Marine Le Pen – é o pântano ou o precipício. Nós, brasileiros, nos sentimos consolados dentro de nossa coitada inveja da qualidade política francesa. Acho até que essa Marine Le Pen poderia abrir espaços de rupturas nas lógicas hegemonizadas dentro do grande capital da robótica, da engenharia química e da engenharia genética, caso se elegesse. Mas logo seria capturada e disciplinada pelo ralo do capitalismo senil, transgênico, pós-humano. Seria um pensamento louco votar na Le Pen, mas esses jovens gerentes do capitalismo só estão sendo desafiados pela direita mais antiga, pelo viés reacionário. Isso nos confunde um tanto, no nível do desejo, embora na razão não possamos escolher a loira, até porque seu significado se comunica, em uma equação simplória, com o Bolsonaro do Brasil. Aqui, essa direita antiga é composta por psicopatas assumidos, violadores, mafiosos bandidos de filme noir como o inesquecível Chinatown, com o Jack Nicholson e a Faye Dunaway. Nesse filme, os mocinhos não têm qualquer chance e o bandido mor é o pai da princesa, o rei. E não há sapatinho de cristal como objeto de cura. Macron, o banqueiro jovem casado com uma fêmea integradora, a um só tempo, de Sigmund Freud e Simone de Beauvoir, liberado de culpas pela nova ideologia feminista, GLTB e libertária do direito às diferenças, vencerá as eleições na França, mas Marine Le Pen participará do novo governo. A esquerda francesa está nas ruas, apanhando como nós, provavelmente apanhando menos porque lá é a França, velha e boa, e eles não costumam quebrar cabeças e faces de jovens indefesos que passam nas ruas.  Não é mais possível ver duas extremidades nessa história desse mundo disciplinado por um modo quase chinês (imperial ou maoísta, uarever), brutal, associado a um estilo norte-americano disruptivo, na prática mergulhado em psicopatias sociais transbordantes - em tese limpo e ordenado - em suas lógicas predominantes.  A cada dia que passa aprendo a relaxar em meio a tantas agonias, a cada semana mais me sinto sem compromisso de escrever para que alguém entenda e goste, Zeferina. Você sendo muito mais do que uma ideia psicanalítica de um arquétipo do bem ou um si mesmo perdoado, sendo mesmo um nagual do Castañeda, talvez. Sobretudo, Zeferina, você sendo um direito inalienável meu de ser e pertencer. Direito à palavra. Menos pressa tenho em chegar a algum lugar, algum objetivo. A vida é muito curta, nós a vivemos como uma bola de neve caindo montanha abaixo e, ainda, passamos a segunda parte dela encontrando explicações para nós mesmos sobre os motivos do que fizemos na primeira parte.
                                       Mas se até a França desmorona eu posso ler Kant em paz, pensando nos dois jovens adeptos de Gilles Deleuze, um pobre e lindo punk operador de telemarketing e outra bem sucedida e refinada autora de livros de filosofia, cheia de títulos acadêmicos e professora de universidade. Vou a Kant tentar entender o que separa um do outro, nesses dois jovens adoradores do lógico genial e analista do mundo à beira do caos, o Deleuze, autor do livro Anti-Édipo, uma obra fundacional de entendimentos sobre o que vem depois do moderno. Que identidade tem essa separação entre um deleuziano pobre e um bem sucedido com o problema da decadência da esquerda tradicional francesa?
                                   Emanuel Kant acreditava – dizem - em uma filosofia perfeita, em um encontro preciso com a verdade por meio de construções racionais eficientes, e Deleuze entendia – depois de vários outros pensadores alemães – ser o mundo dos seres e das coisas um permanente movimento caótico inapreensível pela consciência e o olhar humanos. Seria preciso então, para Deleuze, falar e escrever  filosofias de um modo nômade, como quem escreve  romances psicanalíticos. Uma espécie de ação direta movida pelo desejo, pelo deus Dionísio, mas refletida em conhecimentos adquiridos pela geometria revelada nas maravilhosas máquinas de cálculos e formas que são os computadores. Já Kant, um alemão do século dezoito, adorava organizar as imagens, os objetos de sua observação, em gavetinhas de um armário enorme e sólido: “A antiga filosofia grega repartia-se em três ciências: a Física, a Ética e a Lógica. Esta divisão está inteiramente de acordo com a natureza das coisas, nem temos que introduzir-lhe qualquer espécie de aperfeiçoamento, a não ser acrescentar o princípio em que ela se baseia, para que desse modo possamos, por um lado, possuir a certeza de ela ser completa e, por outro lado, determinar com exatidão as subdivisões necessárias. Todo conhecimento racional é ou material e refere-se a qualquer objeto, ou formal e ocupa-se exclusivamente com a forma do entendimento e da razão, um e outro em si mesmos considerados, e com as regras universais do pensamento em geral, sem distinção de objetos. A filosofia formal denomina-se LÓGICA, mas a filosofia material, que trata de objetos determinados e das leis a que eles estão sujeitos, divide-se, por sua vez, em duas, visto estas leis serem ou leis da natureza ou leis da liberdade. A ciência das primeiras chama-se FÍSICA; a das segundas, ÉTICA. Àquela dá-se também o nome de Filosofia da natureza ou Filosofia natural; a esta, o de Filosofia dos costumes”. (Fundamentação da Metafísica dos Costumes-Immanuel Kant) Achei lá na Wikipédia. Não tenha medo, você que me lê, de estudar filosofia por recortes na internet, ou livrinhos baratos e velhos achados em uma prateleira qualquer. Eles estão prendendo meninos negros, como o Rafael Braga, para estupra-los e condena-los pelo uso de maconha, ou por indicia-los como entregadores de drogas para jovens “bem de vida e estudados”. Estão esfacelando vidas indefesas. Então podemos pensar, falar e estudar até mesmo Kant, livremente, sendo nômades.
                                              Regina Schöpke é a bem sucedida e refinada autora de livros de filosofia que falei acima e, ao procura-la nas redes sociais encontrei um blog no qual ela aparece junto a outras personalidades bem sucedidas tais como Bolivar Lamounier, Merval Pereira, Fernando Gabeira, Eliane Cantanhêde e Miriam Leitão. É professora universitária e escreve no jornal O Estado de São Paulo. Li quase todo o seu livro Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade, editado pela Contraponto, editora vinculada ao nome de César Benjamin, um militante da esquerda armada do tempo da ditadura militar, preso na época e depois exilado, que participou da fundação do Partido dos Trabalhadores e depois rompeu com este partido. Atualmente, 2017, o César Benjamin enfrenta a escolha de ser secretário de educação do governo do prefeito Marcelo Crivella, no Rio de Janeiro. O livro da professora e filósofa contém um pensamento rigoroso que me pareceu álgebra pura, Zeferina, aquilo que Kant chamou de lógica. Vou destacar dois pequenos recortes para afirmar o que eu entendi e o que me fez não gostar do pensamento dela. No primeiro, ela diz, de Deleuze: “Era preciso inventar um conceito que libertasse a diferença das regras limitadoras da representação . E libertá-la da representação é libertá-la de sua subordinação à ‘identidade’, ao ‘mesmo’ e à ‘semelhança’. É dar a ela ‘voz’ própria, ou seja, é assegurar à diferença uma ontologia sempre negada por uma imagem de pensamento ortodoxa. Dissemos ‘ontologia’ porque a diferença pura é a própria expressão do ‘ser’”. No segundo, Regina conclui, no fim do livro, e sobre Deleuze: “Para ele, o ser é unívoco. Mas a univocidade não significa um único e mesmo ser para todas as coisas. Muito pelo contrário, os seres são múltiplos e diversos. Univocidade significa que todos os seres se dizem na diferença e na repetição. A diferença é um acontecimento do próprio ser, é como ele se expressa, é como ele se diz. Cada ser é único. É por isso que tomar a diferença como atributo ou como negação é diminuí-la, reduzi-la a formas menores”. Estou chegando perto do título desse capítulo, Zeferina, ou seja, como aceitar as diferenças democráticas sem se deixar capturar pelo capitalismo compulsivamente disruptivo e genocida.
                                             Ocorre que o acontecer da diferença pura no campo de existência de um ser humano, penso eu, ele é sempre histórico. E eu preferiria uma reflexão mais “kantiana” sobre ética, para que pudéssemos entender os lugares políticos ocupados pelos seres, e também uma reflexão mais histórica, não num viés materialista simples, mas agora num formato que integre todo um conjunto de conhecimentos inaugurados na linguagem de Deleuze, depois de Foucault, depois de Nietszche.  Ver esse acontecer como uma profusão de novidades, sem sentidos de memórias coletivas, é próprio do tempo histórico da globalização neoliberal, esse tempo de um incrível excesso de imagens e de objetos descartáveis a produzirem uma desordem na superfície do planeta Terra. Certo, Deleuze consegue descrever um mundo no qual a técnica – a tecnologia, o conhecimento de como produzir minúsculas máquinas, químicas, objetos muito complexos, armas incríveis - captura todo o planeta Terra, incluindo todos os humanos, e essa ferramenta que se chama informática produz informações separadas entre elas – como se nenhuma relação tivessem umas e outras, para depois agrupa-las em conjuntos temáticos, matemáticos, fórmulas (os pobres, os ricos, os homossexuais, os heterossexuais, os homens, as mulheres, os jovens, as tribos, as diferentes imagens dos “si mesmos” e por aí vai) que, não obstante a alegada imanência radical são – na verdade – pequenas localizações de uma mesma e gigantesca transcendência, esta que joga os humanos a se pensarem como acoplados a avatares representantes de uma liberdade suposta como infinita. Enfim, uma transcendência a se afirmar como eterno simulacro, como sendo o dever ser de um devir de pura outrencidade e, no entanto, apenas mais uma ideologia, uma crença a conduzir novamente os humanos a comportamentos de exércitos burros, inessenciais (como afirmava a velha e boa Simone de Beauvoir), descartáveis. Mas entre descrever o caos deste capitalismo senil, terminal, genocida, e uma fala ou escrita do que podemos fazer a esse respeito pode haver uma distância tão grande como essa que separa o jovem punk que apanha da polícia de choque da jovem professora e filósofa que escreve junto a apoiadores desta violência policial, escreve em blogs e jornais sustentados por gerentes que sustentam essa violência policial que arranca olhos e quebra crâneos de jovens pacíficos e desarmados.
                                              Nunca li Kant antes de hoje, Zeferina, e já não lembro quando fiquei sabendo ele ter sido um homem desses das listas dos dez mais importantes de um século. Devo ter lido sobre ele em aulas de introdução à filosofia, no básico do primeiro ano de universidade, 1977, mas lembro da minha total falta de atenção na época, interessada que estava em aprender a fazer sexo com amor, aprendendo então a escolher um jovem homem o mais bonito, inteligente e valente que eu conseguisse seduzir - em uma vida sempre corrida, ameaçada, acionando ao mesmo tempo audácia e medo – e aprendendo a participar com ele (de preferência como marido) de uma revolução para instalar no Brasil um governo capaz de deixar toda a população brasileira alegre e esperançosa, com uma vida boa. A burguesia era um problema, mas não havia na minha índole, vontade alguma de fuzilar nem mesmo o mais louco estuprador, e ao ver a família real russa ser fuzilada, em um filme qualquer, eu me imaginava inimiga de toda e qualquer ideologia (linguagem de uma transcendência) que propusesse maltratar quem quer que fosse, seja qual fosse o motivo. Era aquela história de dividir a comida existente no mundo entre todos os humanos, fazer todos eles alcançarem o conhecimento, dar a todos as mesmas oportunidades de serem livres e dignos.
                                                        Fui ouvir novamente sobre Kant ao assistir um vídeo de Roberto Machado no Youtube, no qual eles dois apareciam – Kant e Machado – como aquele homem maravilhoso que, finalmente, eu não havia chegado nem perto de conseguir para marido. Roberto parecia um pensador grandioso, insuspeito para acusações mundanas sobre quem lava a louça ou quem apoia ou não o outro. Fico imaginando esse homem, o Kant, a pensar os movimentos das coisas e dos seres no mundo. Se eu pudesse falar com ele, Zeferina, como posso falar contigo, perguntaria sobre os porquês de um jovem adulto admirador de Gilles Deleuze só poder ser telefonista em uma empresa de telemarketing e outro, quase da mesma idade, poder tornar-se uma filósofa e professora de universidade. Porque um deles pode se tornar uma “pessoa bacana” e o outro restar dentro da sofrida condição de uma pessoa qualquer ameaçada por uma polícia de choque não raro perigosíssima para o cidadão comum, ainda que haja um rastro de “semelhança espiritual interna” entre os dois. Kant não pode me responder ou eu não posso ouvi-lo. Mas o teu sorriso irônico e generoso, sentido como um nagual por mim, Zeferina, me diz ter essa diferença alguma coisa a ver com os fracassos da esquerda, na França e no Brasil, e que esses fracassos fazem renascer – surpreendentemente – aquele objeto de desejo, um sonho bom, do direito ao comum, ao bem comum, ao agir de todos em meio a um espaço público, do direito de ser um “nós” dentro de um ordenamento social que sabe falar dos si mesmos como individualidades integradas a uma inteligibilidade histórica. Enfim, quem diria, o excesso da diferença pura produz a boiada e o choque policial. E enquanto alguns deleuzianos procuram se acomodar dentro de estados de exceção, nossos si mesmos tão diferentes entre si afirmam, juntos: enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não eu canto”(Belchior).


imagem da página https://rockontro.org/2014/06/04/belchior-sem-medo-do-rock/


Querida Zeferina - carta 8.1 - Simone de Beauvoir, a lavajato e eu mesma



                                  A violência da investigação sobre dinheiros movimentados ilegalmente no Brasil atingiu uma intensidade surpreendente, Zeferina, tornando o espaço dos acontecimentos políticos um lugar em relação ao qual não se faz mais necessário ter pressa alguma. Nada pode fazer uma pessoa comum – no sentido de indivíduo que consegue apenas o dinheiro para o sustento e moradia – a não ser vincular-se como servo, escravo, assessor ou soldado em um castelo feudal de algum tipo de reino. Tirando a palavra assessor, as outras eu uso livremente para falar de empresas, partidos políticos, postos nos governos municipais, estaduais ou nacional, todos vinculados a algum agrupamento de indivíduos reunidos em torno de interesses de grupo, privados portanto. Fora isso, os servos ou escravos podem fazer algum tipo de atividade artística ou lúdica esportiva. Pois é, estamos em um momento da história humana de enormes dificuldades para entender e explicar os acontecimentos. As palavras estão perdendo seus sentidos, as pessoas perdendo a capacidade de compreender umas às outras. Então chamo de “reinos”, porque acabam sendo mesmo um acontecimento num formato medieval invadindo cenários de um tempo pós-moderno. E, no entanto, como sempre é mágica a história, esse acontecimento todo já estava ali há muito mais tempo, como uma gravidez. Foi divulgado em abril de 2017 a fala do patriarca da gigantesca empresa de nome Odebrecht dizendo ter toda essa movimentação semelhante a do tráfico de drogas, com dinheiro vivo e fora dos sistemas legais de contabilidade, sido já feita desde a década de oitenta, antes mesmo de ter sido aprovada a Constituição de 1988. Então esse modo de organizar a circulação do dinheiro cresceu junto com o tráfico de drogas no país.
                                             Quando sairemos do “pós” e do “neo” para encontrar nomes próprios para as coisas e o agir humano no século XXI? Estamos no escuro, adentrando em reinos sem nomes, integradores de federações de exércitos vestindo uniformes diferentes, todos de calças jeans, leggings e moletons, alguns de gravatas, paletós e terninhos de mulheres meio feministas, a maioria tendo por armas uma determinada linguagem em um determinado agir e pensar padrão. E eles só sabem repetir. Tudo em um cenário desta que um dia há de conquistar o nome de grande guerra mundial, ainda que não venha a ser a terceira e última de uma série começada em 1914, por motivos ligados a ineditismos simbólicos e orgânicos dentro dela, mas leve outro grandioso nome como, por exemplo, primeira grande batalha arquetípica do pós-antropoceno anterior. Não, não estou bêbada e nem tendo um episódio delirante. Estou falando com você, Zeferina, e então não preciso agir como uma gueixa perante um bem sucedido homem de esquerda pronto para me chamar de louca, assim, de brincadeira mas sério, cortante, como se fosse um gentil carcereiro, ou uma freira diretora de um convento medieval. Eu disse pós-antropoceno porque segundo alguns estamos numa era geológica dos sapiens e logo sairemos dela, ou seja, deixaremos de ser sapiens e seremos uma outra coisa ou outras coisas. E como estamos em um momento da história humana em que ninguém consegue inventar nomes, ficamos nos “pós” e “neo”. Assim, tipo na beira de um precipício olhando a imensidão azul. Além disso, coloquei anterior porque não posso acreditar em outra ideia que não a de que estamos na véspera de um começo de história humana muito inaugural, tendente a ser apenas uma “idade média alta”, um período rude e difícil de viver. A alta ou anterior sendo a mais antiga de um começo. Provavelmente os sobreviventes vão trocar de nome, enquanto espécie, nem que seja de vergonha mesmo. Mesmo que tenham o mesmo DNA, vão deixar de ser sapiens para fazer de conta que nada daquele passado, esse nosso presente, seja de responsabilidade deles, por descendência. Talvez então esses novos humanos comecem sua série histórica de milênios partindo de uma mentira, again. Novamente, em inglês, parece mais vergonhoso ainda, como se o inglês estivesse a nos fazer uma ironia. Again, again. Uarever, estarei morta mesmo e não sei mais do que umas trinta palavras em inglês, se tanto. E me orgulho disso. A menina antifeminista e se dizente “de direita” com aparência de perversinha de novela que entrou para uma universidade brasileira para fazer um mestrado em “feminismo” e falou que a Simone de Beauvoir era louca, rindo, dando entrevista para um programa de um homem estúpido e violento, a menina feliz em processar uma professora feminista, a menina debochando do feminismo, essa menina provavelmente sabe muito mais inglês do que eu.  Assim, nem preciso ficar me dando ao trabalho de explicar o tamanho da violência da operação lavajato (nome dado por policiais, procuradores e juízes à investigação sobre desvios de dinheiros para fins ilegais, no Brasil do início do século vinte e um, final do vinte) e posso voltar, tranquila, ao tema de Simone de Beauvoir, no seu livro O Segundo Sexo, sobretudo no que nele posso encontrar de mortes e nascimentos relacionados ao meu próprio e verdadeiro eu.
                                            Entrei hoje em duas lojinhas no centro de Imbituba, Zê, uma de perfumes baratos, outra de sutiãs e calcinhas, vendidos ao preço de um dia ou dois trabalhados de uma atendente da lanchonete na qual, depois, tomei um café. Os perfumes e os sutiãs de hoje em dia, Zê, continuam a representar ideias que compõem o mito da princesa, assim como brincos e anéis baratos. Não preciso explicar aqui que eles são produzidos em trabalhos feitos em ambiente controlado por atitude vil, produzidos em linhas de montagem invisíveis, nunca mostradas nessas televisões do tempo da lavajato, cheias de propagandas lindas demais, em intervalos pagos a preços desconhecidos por quem às vê, e que aparecem antes e depois de uma cena de polícia em uma apreensão, um tiroteio ou um inquérito divulgado do mesmo modo como são divulgadas as entrevistas de jogadores de futebol de times caros. Todo mundo sabe como essas mercadorias baratas são produzidas, do Canadá à Coreia do Norte, da Argentina à Rússia. E muitas dessas mercadorias são adquiridas por mulheres trabalhadoras comuns para que elas possam se sentir como princesas, ao menos nos primeiros dias de uso do objeto. Considerando estarmos a viver em um mundo no qual as ideias feministas se tornaram a legalidade simbólica, eu fico me perguntando o que a Simone de Beauvoir pensaria se entrasse hoje nessas lojas que eu entrei. “Deixem os negros votar, eles se tornarão dignos do voto; deem responsabilidades à mulher, ela saberá assumi-las; o fato é que não se poderia esperar dos opressores um movimento gratuito de generosidade; mas ora a revolta dos oprimidos, ora a própria evolução da casta privilegiada criam situações novas; por isso os homens foram levados, em seu próprio interesse, a emancipar parcialmente as mulheres: basta a estas prosseguirem em sua ascensão e os êxitos que vêm obtendo incitam-nas a tanto; parece mais ou menos certo que atingirão dentro de um tempo mais ou menos longo a perfeita igualdade econômica e social, o que acarretará uma metamorfose interior”. Está lá na conclusão do livro, eu a li e agora voltei para os primeiros capítulos. A Simone escreveu uma bíblia, entre tantas outras produzidas na modernidade. Ela mesma afirma que o cristianismo e o marxismo são religiões e ela se pensa como científica, dedicada a verdades “existentes”. Agora que o mundo humano se mostra quase que totalmente tomado por diferentes loucuras, a palavra ciência começa a se confundir com a palavra técnica e isso parece até mais honesto. Mas Simone é linda quando diz que a mulher é um ser aprisionado durante milênios e desejante de tornar-se outro ser com alguma liberdade. A palavra liberdade domina o conteúdo do texto dela.
                                              Estava eu a escrever hoje mesmo, nesse dia da morte do crucificado, em 2017, lá no facebook, sobre a seguinte questão: só haverá uma Constituição digna desse nome no Brasil o dia em que for escrito um conjunto de normas maiores no formato de dez ou vinte frases simples. Isso porque só será uma norma maior se for entendida pela maioria da população brasileira que sabe ler muito pouco ou quase nada. Penso agora que um dos primeiros artigos deveria ser algo assim: “todo habitante nesse país será respeitado na manifestação de seu verdadeiro eu, independente de sexo, etnia, profissão, idade ou religião, desde que não se manifeste para desrespeitar a manifestação do outro”. Bem entendido, fale direitinho, não use palavrões, não seja debochada, mas critique livremente as ideias das quais discordar. Então, Zeferina, o meu verdadeiro eu me faz pensar, nesse momento histórico, que eu devo dispor do direito de falar algo sobre a Simone de Beauvoir sem ter que ler todos os livros dela e sobre ela e sem ter que escrever um tratado tão enciclopédico como o dela para ter minhas ideias sobre feminismo respeitadas. Leia e concorde ou discorde quem quiser, mas sem desrespeitar o meu eu. Então, acredito que esses movimentos feministas que se tornaram acontecimentos de multidões e repercutem em grandes eventos públicos bandeiras como a de “nenhuma a menos” referentes à luta contra a violência sobre a mulher e ao limite máximo dessa violência que vem a ser os assassinatos de gênero, atualmente chamados de feminicídios, eles se apoiam teoricamente em ideias como a que esse parágrafo da Simone apresenta. Eles se pensam como movimentos de mulheres em processo de libertação supostamente vivendo uma “metamorfose interior” naquilo que a Simone explica, em seu livro, como sendo as atitudes motivadas por autoimagens “desgraçadas” por uma mitologia que retira a “sua liberdade”, presenteando-a “com os tesouros falazes de sua feminilidade”. E, ainda, Simone escreve: “Balzac descreveu muito bem essa manobra quando aconselhou ao homem que a tratasse como escrava, persuadindo-a de que é rainha”. E “nenhuma a menos” parece um grande acontecimento de multidão visando à proteção de cada uma. No entanto, o que vemos nesse mundo comandado por inquéritos policiais e processos judiciais acionados por meio de ações de grandes mídias são mulheres predominantemente ainda se percebendo como desejando incorporar o mito da princesa, ou da rainha, e aparecer perante o macho viril como “sua vassala”, no dizer de Simone, onde a mulher precisa aparecer como enfeite, imagem de puerilidade, frivolidade, irresponsabilidade. Não o macho colorido do casal de canarinhos, no qual o masculino é o que precisa seduzir por meio do enfeite, mas a fêmea do homem, aquela que fica adornando o doméstico, ou enfeitando os desfiles do rei, a feminilidade como uma ilusão desta vez reutilizada em bricolagens tão multiplicadas em signos distintos que acaba compondo a imagem de homens andróginos, cantores e artistas populares adornados de um modo usualmente feminino. E esse adorno, finalmente, feito em linhas de produção nas quais mulheres e homens restam escravizados, e vendido em lojinhas baratas espalhadas pelo mundo.  E todo mundo sabe. Diante disso me faço três perguntas: esse “nenhuma a menos” unifica quais “umas” e intenta proteger quais “umas”? Outra pergunta que me ocupa é, se o direito ao voto e os direitos ao estudo e ao trabalho, no interior da sociedade capitalista do pós-segunda grande guerra, que iluminam toda a obra de Simone de Beauvoir, como motores de uma conquista “dentro de um tempo mais ou menos longo” da “perfeita igualdade econômica e social” não compõem uma mitologia de uma época mais ingênua e crente na capacidade fabril dos humanos sapiens, no interior de uma racionalidade derrotada hoje pela violência quase indescritível das grandes corporações? Não seria então esse movimento feminista, estacionado no século vinte, um eco religioso - tendente à melancolia coletiva – de uma mitologia do progresso já inexistente como solução humana de conjunto, para as grandes multidões empobrecidas e desiludidas do sul do Planeta?

                                        De onde eu falo, Zeferina? Quem me ajudou a chegar nesse lugar de liberdade de onde escrevo? Talvez um pouco Simone, pela pregnância de sua crença no ambiente social moderno, nas universidades, nos cenários das protagonistas dos filmes de Hollywood. Mas a maior parte da mulher em situação de combate que sou só pode ter vindo de você, Zê, da vó Nair, das costureiras do início do século vinte no Brasil, sobretudo das professoras herdeiras das sufragistas, da minha mãe que ensinava latim aos vinte anos.  Eu venho de uma coragem feminina acontecida aqui mesmo, no Brasil, e minha intelectualidade não foi nunca respeitada como sempre foi a da Simone de Beauvoir. E é nas feridas desse desrespeito que nasce a lógica endemoniada da menina que debocha a milenar luta das mulheres por mínimas liberdades civis.

versão um. foto: daisy weston

Querida Zeferina - carta 7.1 - Rosa Luxemburgo, Hitchcock e a lavajato



                             Que lei é essa, pensei, Zeferina. Eu que desde a juventude me interesso tão pouco pelos detalhes cotidianos de acontecimentos mensais e anuais. Não sei, mas acho que as mulheres portadoras do que eu prefiro entender como um enigma, já os psicólogos junguianos chamando de “complexo” e o senso comum adotando antigos manuais psiquiátricos para falar em “bipolaridades”, as mulheres cassandras não se interessam pela imagem formiga da realidade que corre como um rio todos os dias. Nós estamos sempre ligadas em algo que algumas chamam de “sextos sentido”, algo que surge como uma contra-intuição, uma percepção sobre o real diferente da de “todo o mundo” e, assim, não ligamos para o que é anunciado nas tevês. Muito menos nos jornais em meio papel, que não lemos e quando líamos a Folha de São Paulo, quando ela era o máximo do cosmopolitismo inteligente brasileiro, pescávamos apenas os grandes artigos de debates filosóficos-políticos, os ensaios psicanalíticos, as críticas de cinema, livros e teatros. As cassandras são viajantes, de olhares no horizonte, perdidas em interioridades milenares, referenciadas em uma tradição de isolamento da bruxa, da herética que ninguém entende. Talvez por isso, Zê, fui discutir com aquele menino de trinta anos o problema dessa confusão das carnes brasileiras e a operação da polícia federal e ele me disse: “mas desde que saiu a lei da transparência, a polícia federal e o ministério público ganharam essa atribuição de poder divulgar as investigações e os segredos de justiça começaram a cair”. Desde quando a grande mídia protege a circulação livre de verdades em debate e em cena? Eu braba, indignada, fiz um discurso que não cabe aqui. O menino respondeu: “Bom, mas aí é o capitalismo. Nós vivemos no capitalismo”. Como que dizendo que ele, o capitalismo, não pode ser denunciado. Fui ver que lei era essa, afinal, e estava lá, assinada pela Dilma, a derrubada sob linchamento da grande mídia: “LEI Nº 12.527, DE 18 DE NOVEMBRO DE 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências”.
                                                 Então isso tudo vem sendo costurado no congresso nacional desde o início dos anos noventa e esse debate não foi levado pela esquerda brasileira com a importância devida, nas escolas, nos partidos, nos sindicatos e movimentos sociais. A tal esquerda ficou divulgando e tornando populares ideias sobre pobres, indígenas, negros, mulheres, gays, todos esses e seus direitos a moradia, identidade e liberdades individuais, ficou divulgando sobre feiuras de uma classe média que não sabe ler livros inteligentes e não falou com a população sobre quem e como são controladas as circulações de informação no Brasil. Eu nem sabia dessa lei, porque quando ouvi falar em lei que obrigava a divulgar salários de servidores públicos e prestações de conta de órgãos públicos já achava tudo uma palhaçada, porque o capitalismo organiza todo o ambiente social por meio, principalmente, do que circula de capital e riquezas em engendramentos de propriedades privadas. Fiquei pensando, então, quando foi que aquela esquerda perdeu a capacidade de criticar a apropriação privada dos mecanismos de produção e circulação de riquezas, entre elas, a informação como um valor oficial dentro de um estado nacional? Tá certo que de 1989 até 1991, quando caem o muro de Berlim e quando a União Soviética foi abduzida por uma inexistência legal e formal retroativa a 1917 como imaginário popular e mundial, o comunismo bom foi tornado clandestino no planeta inteiro. Ser comunista passou a ser uma espécie de registro de sobrenome de antepassados. O cara pertencia à linhagem dos “comunistas”, mas agora ele era um sujeito sensato e ficava discutindo banalidades da gestão do capitalismo como se este fosse a única coisa possível no mundo do ordenamento político, econômico e social dos humanos.
O Harari, do livro Homo Deus, um mágico do Tarô, faz brilhantes malabarismos para passar como verdade absoluta a ideia de que o capitalismo é a própria civilização humana, que ele é uma engrenagem saída das entranhas dos limites humanos de inteligência cognitiva, uma inteligência advinda de uma consciência produzida por, digamos, sentimentos burros. Deriva daí que possivelmente as máquinas pensantes, os computadores, poderiam produzir uma conexão de uma teia de pensamentos lógicos exteriores a qualquer consciência individual ou coletiva humana, teia essa – ou redes sociais virtuais mergulhadas em algoritmos autônomos - capaz de engendrar soluções talvez até de saída desse tal capitalismo humanamente meio burro e arriscado quanto a desequilíbrios ecológicos e demográficos perigosos. Então sairíamos do capitalismo não para um controle social dos modos de produção da vida, um controle social sobre a iniciativa privada que restringisse o privado livre aos direitos de cada um ser o que quiser. Ou seja, uma versão democrática radical da ideia comunista de verdade republicana. Não, segundo o Harari, uma boa parte dos que adoram computadores e algoritmos estaria pensando em sair do capitalismo em direção ao fim da humanidade sapiens, enquanto adentraríamos em um planeta hegemonizado pelo pensamento sem consciência individual. No meio do livro, o Harari passa pelo comunismo tratando-o como uma loucura idêntica ao nazismo. Isso em meia dúzia de linhas, sem grandes explicações.
                                               Ainda sem saber da tal lei da transparência da Dilma, e de que essa lei era tramada desde o fim da URSS e a proibição mundial de qualquer validade e verdade humana dentro da palavra “comunismo”, que havia sido transformada em um sobrenome senil, achei Rosa Luxemburgo na estante da casa da minha mãe, sua bisneta, Zeferina, a filha da Nair, minha vó. No livro, sobre o problema da reprodução (simples e ampliada) do capital, um capítulo com o título “A Reprodução do Capital e seu meio ambiente”. Eu, triste por causa do ataque da polícia federal aos milhares de frigoríficos brasileiros, ação política que, por óbvio, dava pra ver conduziria os menores e mais frágeis a medos e prováveis perdas econômicas, e que uns caras da tal esquerda diziam que iria falir a indústria de carnes processadas e conduzir o Brasil a exportador de carne “in natura”; eu desanimada com o poder dessa polícia federal de ser governo nacional a partir de uma operação sua, copiei trechos da Rosa, para me acalmar:  ela escreveu que “ não conseguiria expor com suficiente clareza o processo global da produção capitalista em seu aspecto concreto, nem seus limites históricos objetivos” e que ela estava a tentar “formular com toda a exatidão científica esse problema”, isso em dezembro de 1912, quando nem em sonho delirante se poderia imaginar um planeta inundado pelos computadores e redes sociais virtuais. A Rosa escreveu um bobagem, a meu ver contra-intuitivo e feminista, a ideia de que “numa tribo agrária comunista primitiva, a reprodução e todo o plano da vida econômica correrão a cargo do conjunto total dos que trabalham e de seus órgãos democráticos”. A palavra “democráticos” da Rosa entrando em contradição com o texto posterior da Simone de Beauvoir, a feminista falando na odiosa e escravizada condição de coisa da mulher desde essa sociedade tão elogiada pela Rosa. A esquerda da Simone rejeitando a validade do trabalho doméstico como um lugar político, uma esquerda já abduzida pela ideia de valor no campo da produção de riquezas postas em mercadorias com valores calculados com “exatidão científica”, substituindo uma esquerda tão ingênua, a da Rosa, crente na veracidade absoluta do cálculo matemático, esse dos algoritmos do Harari, cálculo aparentemente exterior à produção consciente – e humana – de verdades circulantes em múltiplos níveis e escalas do real.
Lembrei, então, do Paul Virilio, no livro A Máquina de Visão, onde ele diz que o real só acontece como devir apreensível pela consciência quando ele é visto pelo olho humano. Mesmo que esse devir do real, digo eu, não seja apreensível como uma totalidade, essa totalidade não sendo apreensível nem mesmo pelo somatório de todos os olhares humanos, porque os olhares se comunicam entre si por meio de subjetividades no entendimento. Então achei neste livro essa frase impressionante, dado o que os brasileiros estão passando com o furacão chamado de “lavajato”: “ ‘Ao contrário do cinema’, dizia Hitchcock, ‘na televisão não há tempo para o suspense, nela só pode existir a surpresa.’ Esta é a própria lógica paradoxal do videograma. Uma lógica que privilegia o acidental, a surpresa, em detrimento da substância durável da mensagem, como era o caso na era desta lógica dialética do fotograma, que valorizava de uma só vez a extensividade da duração e a ampliação da extensão das representações”. Página 94, para quem lê, Zeferina.
Fico pensando, Zeferina, como essa esquerda que se deixou humilhar a ponto de perder o direito a falar em comunismo como um sonho esperançoso, um comunismo desejável, amistoso e sinônimo da palavra utopia, conseguiu deixar passar no Brasil todo esse processo de legislação sobre o acesso a informações, desde 1991, sem questionar a tremenda inverdade e obscuridade no modo como os conteúdos televisivos poderiam ser acionados dentro desse gerenciamento aristocrático das mídias grandes. Mais que isso, eu fico pensando agora que a própria ideia de “transparência” é corrompida, mentirosa, pois transparente é o vidro, mas o vidro da janela deixa passar o real perante os olhos de quem vê e a tela da televisão nunca, jamais, em tempo algum, é um vidro transparente, ela é uma composição tecnológica, como diz o Hitchcock, capaz apenas de veicular surpresas, porque nem nas novelas o acontecimento deixa de ficar contido em impactos de cenas a cada dia, e cada uma dessas cenas surpresas são articuladas em torno de um conjunto de linguagens faladas e apresentadas por atores pensados dentro de fórmulas semióticas descritíveis, distantes da inapreensibilidade do real.

A Rosa queria ser científica, uma cientificidade a nos parecer tão ingênua para quem vê com os próprios olhos a imensidão desgovernada das tessituras dos algoritmos autônomos espalhados em redes virtuais. Mas ela era a Rosa Luxemburgo, amada pelos comunistas sobreviventes até hoje, esses neocomunistas que já entenderam ser necessário defender as memórias coletivas humanas, que essas memórias não são verdades absolutas e que dependem de conexões conscientes de muitos enredos de subjetividades conscientes e apaixonadas. E os nossos amores não são essas letras bobas de algumas músicas sem poesia que inundam as cenas comerciais das grandes mídias, o nosso amar apaixonado é real, sanguíneo, inusitado, pré-cognitivo ainda que consciente. O Harari diz que grande parte do capital cognitivo pensa ser o nosso amar mero acontecimento hormonal, químico, controlável pela indústria farmacêutica. Mas se assim fosse, como explicar o desejo apaixonado do velho sem hormônios? Pela memória, por óbvio, ele se lembra daquele sexo que ele fez na cachoeira, embaixo da água e em pé, segurando nos braços a amada. Bom, mais isso é consciência, certo? Isso é um acontecimento humano, certo? E não é transparente, é sensível e dele só se lembra quem viu e viveu com seu corpo imensamente humano.  Bom dia, Zeferina.

Querida Zeferina - carta dez - princípio da desceleridade, neo-escravismo e quilombos virtuais

                                             
   

                                            Querida Zeferina,

                                       Essa carta começou a ser escrita em 2012 e era apenas uma anotação despreocupada: "O Galvão Bueno disse, hoje, na corrida da fórmula um, “vai trabalhar, é bom trabalhar!”, a respeito da ação de uma das equipes em disputa. Ontem fui buscar as lajotas que faltavam, para o deque de cima da minha casa, lá na região urbana da ilha, e a dona da loja, estava muito abatida. Eu disse pra ela: tão dizendo que a classe média tá trabalhando mais de 12 horas por dia, doze na média, e estamos ficando doentes; acho que estamos em uma ditadura da mídia. Ela adorou meu comentário e respondeu: 'só os bem miseráveis tão bem, porque o governo tá dando comida pra eles. Nós estamos falindo, os donos de lojas, e estamos ficando com depressão'. Eu penso: se estamos, evidentemente, em uma ditadura, porque os meus conhecidos de classe média silenciam? Que houve com eles? Vou continuar o texto sobre os manifestos feministas; estou costurando, à mão, uma cortina para a janela da cozinha da minha casa. Estou fazendo isso faz meses, cheio de pedaços de panos diferente, um patwoork lindo. Essas costuras manuais são verdadeiros mantras, orações à religação com valores pela vida e pelo equilíbrio da espécie humana com o restante do Planeta. Credo, foram século de evolução do mundo fabril para o mundo informatizado e nunca foi descoberto esse milagre: o da lentidão, da calma, do cuidado com a vida. Zeferina é um lugar de esperança para os seres humanos redescobrirem estes valores".
                                           Olha que gracinha, eu estava a pensar sobre memórias coletivas de longa duração e potências de rastro forte e não sabia, ou não tinha coragem, de falar sobre isso, então eu chamava tudo o que me dava paz e segurança sobre o meu "si mesmo", a minha consciência sobre o meu próprio ser no mundo, de Zeferina. Amada, amada... O pequeno texto carregava o título de "produtividade abusiva" e eu estava, na época, tentando afirmar uma ideia de conceito para os pensadores no campo do Direito, a de que depois de um certo ponto de velocidade no trabalho, na ação do corpo do operário subordinado, começa a haver um prejuízo gerador de doenças. Pensava eu que isso poderia estar articulado à jornada trabalhada, tipo o número de horas associado à velocidade do agir. Ou seja, depois de um certo tempo trabalhando rápida e ininterruptamente, a(o) trabalhadora (o) começa a sofrer emocionalmente e em sua estrutura de cartilagens, ossos, músculos e tecidos macios e internos. Mas hoje, 2017, o que eu quero falar é muito mais amplo, e eu falo diretamente para ti, tatavó. Conscientemente, pratico um certo número de heresias neste momento. A principal delas é que estou a falar sobre um complexo de conceitos no campo do "mundo jurídico" e, claro, os juristas poderão ou me fuzilar semioticamente, ou me chamar de louca. Mas, considerando que ontem aprovaram uma lei no Brasil que praticamente revoga a lei da abolição, aquela da princesa Isabel em 1888, eu me sinto no direito - e essa palavra usada nessa situação já é uma teoria - de falar grandes pensamentos sobre o Direito.
                                             Estou a escrever, nessa carta, o seguinte: existe, na história de setenta mil anos da humanidade, a produção de fontes materiais que instituíram vários princípios jurídicos e, dentre eles, o mais importante no momento histórico em que o mundo humano sapiens se encontra, é o princípio da desceleridade. Sim, eu inventei essa palavra hoje, não sei se existia já. Vou explicar. Existe o princípio da celeridade que é mais ou menos assim: um julgamento, uma decisão sobre direitos, normas, deveres, faltas, atos ilícitos e punições pode só ser justa se for aplicada no tempo certo. Por exemplo: se um salva-vidas decide correr em direção a uma pessoa que levanta o braço no mar, supondo que ela está passando mal, precisa tomar a decisão de ir até ela em um tempo certo necessário para, caso tenha sido verdade o pedido de socorro, ele tenha tempo de salva-la. Normalmente os salva-vidas começam a correr para a beira do mar olhando ao longe e quando o afogado ergue novamente o braço ele acelera a corrida, caso o suposto acidentado pare de acenar e demonstre controle – nadando, por exemplo - o salva-vidas desacelera e continua a olhar, a confirmar a segurança do banhista ele começa a caminhar até mais próximo e finalmente para. Esse princípio tem sido muito falado no Brasil, e creio que no mundo, nesses tempos de grandes acelerações na vida cotidiana dos brasileiros. O que estou a dizer aqui é que esse princípio é verdadeiro, mas dentro do campo de existência dele estão sendo acionados acontecimentos iluminados pela maldade, e pela vontade de humilhar seres humanos subordinados, ou seja, as ideias de rapidez de procedimentos que vemos serem alardeadas na atualidade são derivadas de práticas construídas nas tradições de memórias coletivas humanas no campo da tirania.
                                                O que permite esse entendimento claro sobre lugares do mal, no caso das velocidades no agir, é um outro princípio erguido pela humanidade e que se apresenta no mundo atual como sendo o princípio da desceleridade, qual seja, o entendimento de que para efeitos de justiça na realização do bem comum há uma velocidade máxima para a realização de qualquer ato justo, além do que o ato perde o significado pretendido. Não estou falando em um direito a ser lento, ou em um direito a desaceleração. Vc pode estar quase em “câmera lenta” e ainda pode desacelerar. A aceleração é um acontecimento que vai do parado até o que se torna invisível a olho nu. Mais até, os físicos que sabem sobre esses acontecimentos de velocidades da luz e tempos-espaços. Sei muito pouco sobre o que não sei a esse respeito. Estou pondo em relação um conjunto de outros princípios jurídicos, como o da razoabilidade, com o princípio da celeridade e todos eles vistos sob a ótica dos evidentes e visíveis genocídios que estão sendo praticados no mundo humano atual.
                                                Esse princípio que eu identifiquei (princípio a gente não inventa, eles estão lá, em sociedade, emanam de construções coletivas e estáveis de memórias humanas de longa duração e eles podem ser enunciados e reconhecidos pelo conhecimento jurídico de qualquer sociedade em um ambiente de uma civilização) ilumina fontes materiais do direito que são milenares, como o desejo de usufruir do ócio, do lazer, do tempo livre, da apreciação fortuita dos cenários agradáveis. Tanto humanos quanto outros animais sentem esses desejos e se esforçam em apreciar esses prazeres. Mas ele só ilumina essas fontes materiais no exato momento em que elas se tornam ameaçadas em sua existência, ou seja, quando a capacidade de humanos usufruírem dos benefícios do exercício desses prazeres é proibida, para algum número significativo de indivíduos reunidos em coletividade. Portanto, quando um número suficientemente grande de indivíduos humanos organizados em modos de produção e reprodução da vida se  vê proibido de apreciar uma fração mínima necessária de conforto psíquico em razão de excessos de aceleração dos acontecimentos que o integram, em sua vida cotidiana, no interior de uma determinada sociedade, então o princípio da desceleridade emerge ali para iluminar direitos tais como o de desconexão, o de limitação de uma jornada de trabalho diária, o de regramento de intervalos entre as jornadas e de dias de descanso semanais e anuais.
                                                 Vou ler, Zê, um cara chamado Franco Berardi, que tem um livro com esse nome: A fábrica da infelicidade: trabalho cognitivo e crise da new economy. Não sei se nesse livro, mas em algum lugar ele diz que os suicídios de jovens entre os 18 e os 34 anos está aumentando em uma velocidade assustadora, nos últimos quarenta anos. Isto significa que vários outros acontecimentos destrutivos semelhantes – acidentes de trânsito, formação de gangues violentas, depressões endêmicas e pandêmicas, reduções dos índices de acasalamentos e práticas sexuais estáveis e com envolvimento afetivo – estão aumentando também. Vou escrever mais sobre isso. Por ora, importa saber que esse princípio seria, a meu ver, o iluminador das identidades daquilo que estou chamando de “quilombos virtuais”. O quilombo foi um tipo de comunidade em um específico lugar, no Brasil colonial e imperial escravocrata, onde um agrupamento de humanos de maioria negra - alguns índios e brancos pobres fugitivos - inaugurava um cenário com uma lógica jurídica, política e cultural apartada da sociedade da qual se fugia. Eles tinham clareza sobre qual era essa sociedade: ela era escravista no sentido milenar tradicional, ou seja, o escravo é sequestrado e seu corpo mantido em cativeiro no mundo real. No nosso caso, precisamos identificar do que fugimos para determinar quem somos. Tudo ficou mais iluminado, aos meus olhos, quando li o best seller Homo Deus. Ele tem, nas sua entrelinhas e nos seus silêncios, a omissão do sofrimento em massa dos humanos do século vinte e um motivado pelo excesso e velocidade abusiva da produção de informações e procedimentos em situação de trabalho subordinado e vida controlada por sistemas panópticos. Este livro publicado pela Companhia das Letras divulga para o senso comum a existência de três ideologias - ele chama de seitas - o liberalismo, o humanismo e o dataísmo. Essa última ideologia é a do capital cognitivo de ponta, ou ao menos de parte dele: nanotecnologia, biotecnologia, robótica. Ele afirma que a robótica pode estar em um desenvolvimento que produza a extinção da espécie homo sapiens. Reinterpretando ele, à luz da tradição do pensamento crítico humanista, eu diria que os dataístas que são fundamentalistas vão conseguir matar uma parte da humanidade, porque eles dominam a crença coletiva na velocidade da expansão tecnológica e conseguem impregnar, com essa religião, o princípio da celeridade. Mas eles não dominam os efeitos disso. O autor do livro Homo Deus levanta esse problema: os dataístas não dominam os efeitos da revolução que fazem. Para um enorme problema a solução é simples. No caso, a velocidade que é imposta ao cenário do pensamento coletivo é grande demais, esse pensamento está se fragmentando, se espatifando. Então, nesse caso, o quilombo deve abrir seu território buscando a desaceleração do pensamento. Precisamos pensar lentamente, ler menos e de um modo mais selecionado, ter certeza sobre as palavras que usamos, trocar conversas sobre elas. Precisamos usar palavras escolhidas e acordadas em seus significados possíveis. Por exemplo: tem ou não tem esquerda? E se tem, quais são os seus limites e suas configurações? E conversar calmamente. Essa seria a regra básica na inauguração de um quilombo virtual, porque os quilombos precisam ser imunes ao contágio pelas regulações das quais estão fugindo. O quilombo ou é uma ilha, ou território simbólico cercado por muros e imunidades simbólicas, ou não é um quilombo.
                                            Creio que todos os descendentes de escravos brasileiros sempre carregaram quilombos em suas constituições emocionais. Eu me entendo como nascida quilombola. Somos mais solitários, mais intransigentes, irreverentes, ariscos.

Moro e as aulas chatas - receita para não enlouquecer



Uma vez, quando eu era professora, dei uma aula que as crianças de dez e onze anos adoraram. Chamei de “aula chata”. Falei para elas aguentarem uma aula bem longa e expositiva minha, na qual eu escreveria algumas frases no quadro verde. Falei: “vocês vão ficar com sono e chateados, então eu quero que vocês comecem a anotar no caderno somente as palavras que mais chamarem a atenção, ou porque gostaram dela, uma palavra bonita, ou porque não gostaram, uma palavra feia ou incompreensível. Fiquem fingindo que estão atentos, mas somente se liguem em palavras que se destacarem no que eu estiver falando”. Eles adoraram a brincadeira e imediatamente se colocaram a postos para brincar. No outro dia, entrei na sala de outra turma e estavam todos faceiros quando um perguntou: “você vai dar a aula chata pra nós, professora”? Algumas professoras provavelmente não gostaram da minha brincadeira. Depois, as crianças precisavam trazer uma redação, na aula seguinte, com um texto composto com as palavras que elas haviam selecionado e copiado.
Pois bem, li a postagem do Jean Wyllys, sobre o que eu chamei de “a batalha dos frigoríficos”, e imediatamente me lembrei da aula chata. Foi daí que marquei os seguintes recortes, em um grande texto do deputado de esquerda:
“aumentar seus lucros sem aumentar a produtividade ou a inovação”
“corrompendo funcionários públicos”
“incompetência para fiscalizar as irregularidades”
“os reais interesses das bancadas do boi, da bala e da bíblia, articuladas em uma série de retrocessos para o país”
Fiquei um tanto chocada porque sei que a produtividade e a inovação estão sendo utilizadas, mais ainda da década de noventa pra cá, mas desde sempre, contra os operários e operárias. A produtividade não tem sido construída pela adoção de máquinas mais eficientes, ao contrário, a adoção de máquinas novas acaba criando um cenário inaugurador e sem lei onde os subordinados se veem em situação de neo-escravismos, com adoecimentos e mutilações de novos formatos, a começar pelos perigosos índices de depressão, contidos por adições químicas criadas pela indústria farmacêutica de última geração, incapaz de inibir os índices alarmantes de suicídio e transtornos em populações jovens e adultas.
Depois, a ideia simplória de corrupção, e ainda de funcionários públicos, como erros exteriores à engrenagem econômica e praticados por comportamentos desviantes de uma normalidade suposta como um bom padrão. Depois a ideia de “incompetência” e “irregularidades” para identificar um acontecimento dentro do qual está deixando de entrar no mínimo 74 milhões por dia, no país, sem falar na projeção de um fracasso generalizado da indústria de carnes processadas dentro do Brasil e o consequente e futuro desemprego em massa. Confesso que fiquei besta. Tirando a última frase, sobre a bancada boi, bala e bíblia, o resto é idêntico à fala que a Marina Silva fez sobre o mesmo acontecimento. Uma fala que em nada se opõe à condução da lavajato pelo modo operacional e cognitivo de uma vertente do conhecimento jurídico, o Direito, representada no país, até agora, pelo juiz que dizem que está por sair da condução desse processo, o Moro.
Sou uma Cassandra, isto é, aprendi desde a mais tenra infância a não acreditar em nenhum outro humano e a olhar o mundo com meus próprios olhos. Deriva desse modo fóbico e febril a condição de usar frequentemente o pensamento contra-intuitivo e recortar os cenários a partir de bricolagens pré-cognitivas, ou seja, acreditando mais em entendimentos inventados pela minha especifica subjetividade do que naquilo que os sacerdotes oficiais escrevem em seus papiros e tábuas.  Eu brinco com as palavras de um modo autônomo desde o primeiro vovô viu a uva. Foi isso que ensinei às crianças, nos idos de 1997.
A vantagem desse comportamento intuitivo e criativo é que, em situações de esculhambação generalizada de quem deveria ocupar o lugar –lacaniano- do “pai”, o lugar do discurso crível, a fala e a escrita de quem se pode seguir, o praticante desse comportamento autônomo pode ser virar para entender o mundo sozinho, sem sofrer tanto em cenário de abandono.
Eu não vou nem falar aqui de uma outra postagem que vê o Moro como um malvado, também incompetente, que sairá como que “guilhotinado”, como se o que vem agora antecedesse o surgimento de um Napoleão qualquer. Eu não li o 18 de Brumário, mas imagino o que pode estar escrito lá somente por uma vivência prática sobre a frase famosa do Marx.
Tentando consolar meus amigos mais próximos, vou dizer o seguinte: quando alguém chegar perto de você falando essas palavras chaves: “competência”, “produtividade”, “inovação tecnológica”, “corrupção”, “irregularidades”, sorria e finja que está ouvindo todo o restante do discurso da pessoa. Depois caia fora, discretamente, e procure a sua turma, nem que ela tenha apenas meia dúzia de humanos, entre crianças e velhos. Mas, olha, se mesmo com tudo isso, esse caos político, as turmas todas de uma suposta e indescritível esquerda brasileira conseguirem entrar na fase dois desse game mundial, saindo do golpe contra a Dilma, e se a gente puder seguir vivendo, pensando e fazendo redações com as palavras chaves que lemos e ouvimos, “tamo” no lucro. Porque, sinceramente, eu nunca vi uma degradação simbólica dessas proporções. Começo a lembrar de um texto inteiro, sobre o qual não é necessário defender-se e ficar recortando palavras-chaves. Trata-se de Franco Berardi, quando ele diz:
“A comunicação alfabética possui um ritmo que permite ao cérebro uma recepção lenta, sequencial, reversível. São estas as condições da crítica, que a modernidade considera condição essencial da democracia e da racionalidade. Porém, o que significa “crítica”? No sentido etimológico, crítica é a capacidade de distinguir, particularmente, de diferenciar entre a verdade e a falsidade das afirmações. Quando o ritmo da afirmação é acelerado, a possibilidade de interpretação crítica das afirmações reduz-se a um ponto de aniquilamento. McLuhan escreveu que quando a simultaneidade substitui a sequencialidade — ou seja, quando a afirmação se acelera sem limites — a mente perde sua capacidade de discriminação crítica, passando daquela condição a uma neomitológica. O verdadeiro problema é que as mentes individuais e coletivas perderam sua capacidade de discriminação crítica, de autonomia psíquica e política”.
Volto, então, a chamar a atenção dos amigos para a necessidade de refletir sobre a ideia de “quilombos psíquicos e cognitivos”, ou seja, arcas de noés de gente que detém duas qualidades: não é dono de capital e não desistiu de pensar criticamente. Eu heim...vade retro...


versão um. sem revisão