A separação entre o corpo e o Eu do escravo (que é também o primeiro
ato do fenômeno prostituição) cria, inaugura um fora e um dentro na pessoa humana, tanto no escravizado quanto no
seu dono, o proprietário, em uma dinâmica na qual o fora e o dentro são
antagônicos de um modo irreconciliável, introduzindo nos seres da dupla – o escravo
e seu dono – lógicas ligadas àquilo que a psicologia e a psiquiatria
contemporânea nomeiam como transtorno. Grosso
modo e de forma provisória vamos transcrever aqui a definição da Wikipédia para
esta palavra: “Transtorno tem por característica um comportamento que
exprime contrariedade, decepção,
marcadas por atitudes que revelam desarranjo ou desordem neurológica”.
Já dissemos serem esses espaços tensionados
por uma disputa, quando o escravo se propõe a recuperar uma unidade do seu ser
e o dono se mobiliza para integrar o escravo em uma unidade de uma coisa que é
inteiramente sua propriedade privada. O
tanto de crueldade e violação (dano moral e material ao corpo de ambos os
indivíduos, o dono e o escravo, na medida em que o violador é destituído do
direito à racionalidade e à integridade emocional mínima que o dignifique com
um ser, pessoa, humana ou não humana) inscrito nessas tensões estaria em relação
direta à presença do fenômeno escravismo (e em outra dimensão o acontecimento tipo prostituição) abraçando essa disputa entre o ser
e o seu dono.
No entanto, a presença do fenômeno escravismo só poderá ser entendida em
uma escala de estrutura social, sem a qual teríamos uma situação específica de
crime, de acontecimento fora da norma. Por essa razão iremos desenvolver daqui
por diante um pensamento apoiado na revisão crítica de partes da Dissertação de
Mestrado Tempos e Tutelas, contribuição à história do direito e da
justiça do trabalho no Brasil, defendida por mim, Dinah Lemos, para a
obtenção do título de Mestre em História do Brasil pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, Brasil, em 1997. Por ora, alinhavaremos um
rascunho de recortes a serem reordenados
e reescritos em outra oportunidade. Vamos lá: temos aqui um texto antigo
escrito sob a pressão das dinâmicas aceleradas e tensas dos mestrados e
doutorados da Universidade brasileira imersa nas lógicas do mercado do final do
século XX, comumente chamadas de lógicas
neo-liberais, embora esse termo pareça hoje equivocado já que nomeia
acontecimentos de rígido controle das dinâmicas da sociedade. Poderemos
amadurecê-lo em uma nova potência usando a experiência política e intelectual
adquirida por todos nós (articulados atualmente em uma inteligência coletiva na
web) nos últimos dezesseis anos.
Trata-se de refletir sobre a
limitação jurídica do escravismo a um
acontecimento pessoal, privado e fora das normatizações historicamente
definidas pela palavra contrato. É
sobre esse problema teórico que o texto imaturo que vamos colar por aqui, aos
recortes e com leves revisões, tenta pensar.
O
escravismo brasileiro é percebido por nós, seus descendentes, como um
acontecimento da pré-história da civilização. A distância do escravismo
brasileiro no tempo é um dos significados mais antigos desse acontecimento, desde o momento da lei da Abolição quando o escravo se torna "coisa do passado já extinto, abolido", e
parece ser fruto de uma conjunção de fatores que fluem das noções de Estado,
Direito, Justiça, Coisa e Pessoa, que habitam a memória e a cultura dos
brasileiros. No Brasil de 1996, a escravidão é ilegal e imoral e a maioria dos
mestiços não conhece a sua própria descendência e não reconhece seu parentesco
genético e subjetivo com algum escravo ou liberto há quatro ou cinco gerações. A
maioria dos brasileiros se reconhece como pessoa livre e descendente de pessoas
livres, a condição de coisa, mercadoria ou animal de carga é uma abstração
longínqua que – muitas vezes – só serve para complicar a vida dos jovens negros
ou mestiços, nos bancos escolares, quando são obrigados a testemunhar o
conhecimento de datas, nomes e eventos que nada lhe dizem respeito, do modo
como são apresentados, em enfadonhas provas de história.
O
estudo do escravismo nas universidades também está marcado pela lógica da
abolição, sendo entendida a história do direito do trabalho como “propriamente
dito, começa somente depois da Revolução Francesa, durante o século XIX. Antes
o que houve foi pré-história. (...) O direito do trabalho só se tornou possível
num regime político-social de formal liberdade, de respeito pelo menos jurídico
à livre manifestação da vontade ( Evaristo de Morais Filho, 1971, Introdução ao
Direito do Trabalho).
As
polêmicas sobre a abolição da escravatura no Brasil dizem respeito a sua eficácia. Muitos interpretam a lei áurea
como um ato meramente formal, afirmando não ter tido a mudança jurídica efeito
positivo na realidade. Nesse caso, ou bem os escravos não eram coisa, ou somos
coisa até agora, o que faz com que esse raciocínio não contenha clareza sobre
esse problema da oposição entre ser coisa ou pessoa.
A gravidade dos problemas
relacionados às doenças mentais, aos distúrbios epidêmicos que assolam as
comunidades humanas no Brasil e no mundo, a evidência trágica das epidemias
ligadas ao tráfico de drogas e suas conseqüências, os adoecimentos sociais
epidêmicos ligados à má alimentação (obesidade, diabetes, problemas cardiovasculares)
e à violência urbana indicam estar o conjunto conceitual do conhecimento no
campo do Direito do Trabalho carente de uma profunda e radical revisão de
paradigmas a começar pelo entendimento do que seja o indivíduo ou a pessoa humana.
Precisamos pensar como se nossos pensamentos fossem nosso próprio lar.
(versão um - sem revisão)
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