Corpo e Alma - Escravismo e Prostituição no Brasil da Era Lula - Parte 4

A separação entre o corpo e o Eu do escravo (que é também o primeiro ato do fenômeno prostituição) cria, inaugura um fora e um dentro na pessoa humana, tanto no escravizado quanto no seu dono, o proprietário, em uma dinâmica na qual o fora e o dentro são antagônicos de um modo irreconciliável, introduzindo nos seres da dupla – o escravo e seu dono – lógicas ligadas àquilo que a psicologia e a psiquiatria contemporânea nomeiam como transtorno. Grosso modo e de forma provisória vamos transcrever aqui a definição da Wikipédia para esta palavra: “Transtorno tem por característica um comportamento que exprime contrariedade, decepção, marcadas por atitudes que revelam desarranjo ou desordem neurológica”.   Já dissemos serem esses espaços tensionados por uma disputa, quando o escravo se propõe a recuperar uma unidade do seu ser e o dono se mobiliza para integrar o escravo em uma unidade de uma coisa que é inteiramente sua propriedade privada.  O tanto de crueldade e violação (dano moral e material ao corpo de ambos os indivíduos, o dono e o escravo, na medida em que o violador é destituído do direito à racionalidade e à integridade emocional mínima que o dignifique com um ser, pessoa, humana ou não humana)  inscrito nessas tensões estaria em relação direta à presença do fenômeno escravismo (e em outra dimensão o acontecimento tipo prostituição) abraçando essa disputa entre o ser e o seu dono.

No entanto, a presença do fenômeno escravismo só poderá ser entendida em uma escala de estrutura social, sem a qual teríamos uma situação específica de crime, de acontecimento fora da norma. Por essa razão iremos desenvolver daqui por diante um pensamento apoiado na revisão crítica de partes da Dissertação de Mestrado Tempos e Tutelas,  contribuição à história do direito e da justiça do trabalho no Brasil, defendida por mim, Dinah Lemos, para a obtenção do título de Mestre em História do Brasil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil, em 1997. Por ora, alinhavaremos um rascunho de recortes  a serem reordenados e reescritos em outra oportunidade. Vamos lá: temos aqui um texto antigo escrito sob a pressão das dinâmicas aceleradas e tensas dos mestrados e doutorados da Universidade brasileira imersa nas lógicas do mercado do final do século XX,  comumente chamadas de lógicas neo-liberais, embora esse termo pareça hoje equivocado já que nomeia acontecimentos de rígido controle das dinâmicas da sociedade. Poderemos amadurecê-lo em uma nova potência usando a experiência política e intelectual adquirida por todos nós (articulados atualmente em uma inteligência coletiva na web)  nos últimos dezesseis anos.

Trata-se de refletir sobre a limitação jurídica do escravismo a um acontecimento pessoal, privado e fora das normatizações historicamente definidas pela palavra contrato. É sobre esse problema teórico que o texto imaturo que vamos colar por aqui, aos recortes e com leves revisões, tenta pensar.

O escravismo brasileiro é percebido por nós, seus descendentes, como um acontecimento da pré-história da civilização. A distância do escravismo brasileiro no tempo é um dos significados mais antigos desse acontecimento, desde o momento da lei da Abolição quando o escravo se torna "coisa do passado já extinto, abolido", e parece ser fruto de uma conjunção de fatores que fluem das noções de Estado, Direito, Justiça, Coisa e Pessoa, que habitam a memória e a cultura dos brasileiros. No Brasil de 1996, a escravidão é ilegal e imoral e a maioria dos mestiços não conhece a sua própria descendência e não reconhece seu parentesco genético e subjetivo com algum escravo ou liberto há quatro ou cinco gerações. A maioria dos brasileiros se reconhece como pessoa livre e descendente de pessoas livres, a condição de coisa, mercadoria ou animal de carga é uma abstração longínqua que – muitas vezes – só serve para complicar a vida dos jovens negros ou mestiços, nos bancos escolares, quando são obrigados a testemunhar o conhecimento de datas, nomes e eventos que nada lhe dizem respeito, do modo como são apresentados, em enfadonhas provas de história.
O estudo do escravismo nas universidades também está marcado pela lógica da abolição, sendo entendida a história do direito do trabalho como “propriamente dito, começa somente depois da Revolução Francesa, durante o século XIX. Antes o que houve foi pré-história. (...) O direito do trabalho só se tornou possível num regime político-social de formal liberdade, de respeito pelo menos jurídico à livre manifestação da vontade ( Evaristo de Morais Filho, 1971, Introdução ao Direito do Trabalho).
As polêmicas sobre a abolição da escravatura no Brasil dizem respeito a sua eficácia. Muitos interpretam a lei áurea como um ato meramente formal, afirmando não ter tido a mudança jurídica efeito positivo na realidade. Nesse caso, ou bem os escravos não eram coisa, ou somos coisa até agora, o que faz com que esse raciocínio não contenha clareza sobre esse problema da oposição entre ser coisa ou pessoa.

A gravidade dos problemas relacionados às doenças mentais, aos distúrbios epidêmicos que assolam as comunidades humanas no Brasil e no mundo, a evidência trágica das epidemias ligadas ao tráfico de drogas e suas conseqüências, os adoecimentos sociais epidêmicos ligados à má alimentação (obesidade, diabetes, problemas cardiovasculares) e à violência urbana indicam estar o conjunto conceitual do conhecimento no campo do Direito do Trabalho carente de uma profunda e radical revisão de paradigmas a começar pelo entendimento do que seja o indivíduo ou a pessoa humana.

Precisamos pensar como se nossos pensamentos fossem nosso próprio lar.

                                                              (versão um - sem revisão)


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