Ó noite onde as estrelas mentem
luz, ó noite, única coisa do tamanho do Universo, torna-me, corpo e alma, parte
do teu corpo, que eu me perca em ser mera treva e me torne noite também, sem
sonhos que sejam estrelas em mim, nem sol esperado que ilumine do futuro.
Fernando Pessoa
Fernando Pessoa
Quando escrevemos a nossa "Introdução",
publicada anteriormente, começamos a estudar os fenômenos (constelações de
acontecimentos) nomeados pelas palavras “escravismo” e “prostituição”
abandonando as definições consagradas respectivamente como: 1. aprisionamento
de seres humanos, sob a definição legal, como no Brasil Colônia e Império, ou
como crime, resíduo ilegal de práticas abolidas de maneira consolidada na norma
social, na condição de propriedade privada e subordinação a condições de
pobreza extrema; e 2.venda regular e cotidiana, a varejo, dos órgãos
sexuais e seus invólucros, mediante risco de abuso (sofrimento e dano).
Dissemos que ambos tinham em
comum a separação entre o corpo e a vontade do escravo (a) ou da prostituta (o),
que o Eu da pessoa ficava apartado de seu corpo, provocando um registro de
sensações, impressões, entendimentos no corpo e outro registro diferente no Eu, na memória, identidade, no
conhecimento do escravizado ou do prostituído, sendo que a regularidade e
permanência dos acontecimentos tendia a provocar o retorno da
impressão/conhecimento ocorrido no corpo sobre a memória do Eu. Ou seja, tanto o escravo quanto
a prostituta tendiam a introduzir na memória, no conhecimento, no seu Eu a naturalização do fenômeno.
O que vamos estudar hoje é a
qualidade que esta partição inicial carrega de permitir e favorecer novas
separações em um indivíduo humano. Registre-se uma nota: vamos nos limitar ao
estudo dos seres humanos, neste primeiro momento, embora a extensão dos dois
fenômenos atinja aquilo que consolidamos chamar de natureza animal e vegetal.
Nossos estudos sobre esses dois
fenômenos estarão mergulhados nas reflexões feitas a partir da leitura simples
ou do estudo um pouco mais aprofundado de um conjunto de escritores,
pensadores, filósofos e poetas dentre os quais listaremos, de um modo impensado
e aleatório os que seguem: Michel Foucault, Hannah Arendt, Karl Marx, Friedrich
Nietzsche, Gilles Deleuze e Félix Guattari, Paul Virilio, Ricardo Benzaquen de
Araújo, Fernando Pessoa, Qorpo Santo, Paul Veyne, Giorgio Agambem, Gilberto
Freyre, Marguerite
Yourcenar,
Sidney Chalhoub,
Elisabeth Roudinesco, Max Weber, Jacques Derrida, Keila Grinberg, Cornelius Castoriadis, Paulo
Freire, José Angel Gaiarsa, Michel Maffesoli, Mircea Eliade, Georges Duby, Bertold
Brecht, Jacques Derrida, Roland Barthes, Ítalo Calvino e Jean Delumeau.
Listamos estes autores para evitar dois problemas e alinhavar uma solução. O primeiro diz respeito a uma determinada tradição que se propõe a condenar um pensamento à propriedade privada de um determinado escritor, aprisioná-lo, escravizá-lo em nome de direitos autorais, ou em nome de um tipo específico de rigorismo escolar, no qual interlocutores só poderão entender-se ao definirem uma linguagem comum partindo de uma mesma interpretação de um único autor. Isso seria: “segundo fulano, tal coisa”; ora, se dois interlocutores concordam que tal coisa, segundo fulano, é mesmo aquilo que os dois entendem, então passarão ao segundo autor, a um segundo conceito entendido em uma linguagem comum. E assim vai sendo construída uma linguagem oficial, representativa de um grupo social, ou de uma sociedade que alicerça suas representações em autores-inventores e propriedades privadas sobre a invenção.
Ocorre que a invenção só o é no momento em que nasce, tornando-se já outra coisa quando apropriada e redistribuída ao meio por outro sujeito distinto do primeiro enunciador. O próprio meio se modifica e, não sendo o mesmo em um segundo momento, quando a invenção é reapropriada e redistribuída, já não recepcionará a invenção como uma mesma coisa, um mesmo objeto ou ser. O segundo problema vem a ser o de que a leitura de um texto repleto de citações, além de mais difícil e enovelada em redemoinhos, conduz o leitor à posição de um emudecimento servil, já que as amarrações entre um autor citado, o texto inaugural do autor que se lê e outro autor citado não ficam provadas, restando sempre um céu estrelado de dobras nas quais se perde um conhecimento vedado ao leitor. É como uma pessoa comum assistindo um solo de um exímio artista, seja ele um violonista ou um equilibrista, um atleta, um mágico: sabe o leitor, de antemão, que ele não sabe nada, ou muito pouco sobre como fazer aquilo e que, portanto, não saberá jamais onde estariam os erros, as lacunas, os não-pertencimentos obscurecidos pelo conjunto da obra. Ou seja, quando um texto alinhava uma determinada historiografia de invenções conceituais de forma genealógica, e dessa sucessão deriva uma fórmula, um axioma, uma lógica ele estará irremediavelmente pendendo ao sofisma, mesmo que seu enunciador esteja mergulhando em falácias inadvertidamente.
Listamos estes autores para evitar dois problemas e alinhavar uma solução. O primeiro diz respeito a uma determinada tradição que se propõe a condenar um pensamento à propriedade privada de um determinado escritor, aprisioná-lo, escravizá-lo em nome de direitos autorais, ou em nome de um tipo específico de rigorismo escolar, no qual interlocutores só poderão entender-se ao definirem uma linguagem comum partindo de uma mesma interpretação de um único autor. Isso seria: “segundo fulano, tal coisa”; ora, se dois interlocutores concordam que tal coisa, segundo fulano, é mesmo aquilo que os dois entendem, então passarão ao segundo autor, a um segundo conceito entendido em uma linguagem comum. E assim vai sendo construída uma linguagem oficial, representativa de um grupo social, ou de uma sociedade que alicerça suas representações em autores-inventores e propriedades privadas sobre a invenção.
Ocorre que a invenção só o é no momento em que nasce, tornando-se já outra coisa quando apropriada e redistribuída ao meio por outro sujeito distinto do primeiro enunciador. O próprio meio se modifica e, não sendo o mesmo em um segundo momento, quando a invenção é reapropriada e redistribuída, já não recepcionará a invenção como uma mesma coisa, um mesmo objeto ou ser. O segundo problema vem a ser o de que a leitura de um texto repleto de citações, além de mais difícil e enovelada em redemoinhos, conduz o leitor à posição de um emudecimento servil, já que as amarrações entre um autor citado, o texto inaugural do autor que se lê e outro autor citado não ficam provadas, restando sempre um céu estrelado de dobras nas quais se perde um conhecimento vedado ao leitor. É como uma pessoa comum assistindo um solo de um exímio artista, seja ele um violonista ou um equilibrista, um atleta, um mágico: sabe o leitor, de antemão, que ele não sabe nada, ou muito pouco sobre como fazer aquilo e que, portanto, não saberá jamais onde estariam os erros, as lacunas, os não-pertencimentos obscurecidos pelo conjunto da obra. Ou seja, quando um texto alinhava uma determinada historiografia de invenções conceituais de forma genealógica, e dessa sucessão deriva uma fórmula, um axioma, uma lógica ele estará irremediavelmente pendendo ao sofisma, mesmo que seu enunciador esteja mergulhando em falácias inadvertidamente.
Ao listar
aleatoriamente os autores que amamos, com os quais enfrentamos momentos
difíceis na vida, sem os quais em alguns momentos talvez não tivéssemos
sobrevivido e, mais ainda, deixando a possibilidade de citar novos autores ou
antigos livros esquecidos na memória que se revela agora, estamos criando uma
grande solução: podemos falar sinceramente, sentindo nossa fala como verdadeira
e útil e, ainda, apontar caminhos para nossos leitores fazerem seus próprios
encontros com os autores que nos ajudaram a encontrar a potência da fala, da
escrita. E o texto fica mais limpo, leve, o nosso texto mostrando sua própria
cara, dono de si.
A separação
entre o corpo e o Eu do escravo (que
é também o primeiro ato do fenômeno prostituição)
cria, inaugura um fora e um dentro na pessoa humana, tanto no
escravizado quanto no seu dono, o proprietário. Esses espaços são tensionados
por uma disputa, quando o escravo se propõe a recuperar uma unidade do seu ser
e o dono se mobiliza para integrar o escravo em uma unidade de uma coisa que é
inteiramente sua propriedade privada.
Você vai dizer,
em socorro de toda a história da humanidade e do chão sobre todos os nossos
pés, que o enunciado acima serve para qualquer relação entre dois seres
humanos, que há um exterior que polemiza em tensões o interior das pessoas,
suas identidades, seus desejos, sua psiquê. Eu lhe responderia que o tanto de
crueldade e violação inscrito nessas tensões estaria em relação direta à
presença do fenômeno escravismo (e em
outra dimensão o acontecimento tipo prostituição)
abraçando essa disputa entre o ser e o seu dono.
Antes de
escrever essa parte um, assisti a uma aula inaugural de Roberto Machado. Ele deve
ter aparecido por aqui, na escrita acima. Digo isso para que fique claro que
podemos citar autores em meio a nossos textos, nada nos impede. Não só porque a
citação deveria ter mais claramente um sentido de ato amoroso, para os que
desejam o direito a uma nova autonomia do corpo, da alma e da escrita, mas
também porque seria justo, para que fosse possível a fala e pensamento sobre o escravismo e a prostituição, que o enunciador se colocasse razoavelmente fora dos
dois fenômenos, inaugurando novidades sobre as formas de manifestação de seu Eu e seu corpo para outrem, como você
que me lê agora. Nesse sentido, até mesmo as organizações sociais do uso das
roupas, dos adornos, revelam diversos acontecimentos inclusos nos dois fenômenos
estudados, pois falar sem ter um dono, sendo uma coisa una (ainda que em
movimento) é praticamente estar nu.
(versão dois - discutindo o significado da palavra sofisma)
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