Prescrição - Escravismo e Prostituição no Brasil da Era Lula - Parte 6

Lee Jeffries
Vamos começar alinhavando simplicidades: quem pode falar sobre o Direito? Não, não o "direito", que esse todos falam, o Direito, aquele que é afirmado e não pedido.  E se somente uma minoria de juristas pode falar sobre o Direito, e um grande grupo de profissionais devem fazê-lo acontecer em sociedade (advogados, policiais, procuradores, contadores, servidores, professores, jornalistas, escritores) porque todos os trabalhadores têm de conhecê-lo a ponto de em apenas dois anos terem perdido parte  do direito de reclamar sobre injustiças e danos na esfera onde são mais sacrificados, no trabalho, e  neste não poderem reclamar sobre o que lhes aconteceu cinco anos atrás?

Prescrição é: "Durante a vigência do contrato de trabalho, o empregado que tem um direito violado dispõe de 5 (cinco) anos para pleiteá-lo na Justiça Trabalhista. Assim, para um empregado que tinha o direito mas não recebeu suas férias em janeiro/2004, terá até janeiro/2009 para reclamar, ou seja, 5 (cinco) anos após ter ocorrido a lesão ao direito. Se não o fizer neste prazo, diz-se que o direito está prescrito, não podendo mais ser reclamado. Quando da rescisão de contrato de trabalho, o prazo prescricional é de 02 (dois) anos, isto é, o empregado dispõe de dois anos para reclamar os direitos referentes aos últimos cinco anos de trabalho (de vigência do contrato). (www.guiatrabalhista.com.br )

Os trabalhadores que conseguem se manter em um mesmo emprego durante mais de cinco anos o fazem por meio de um subordinação que inclui aquilo nomeado por historiadores especialistas no tema do escravismo brasileiro como sendo o tripé  "fidelidade, obediência e humildade":

"A inserção social do escravo, sua aceitação pelos homens livres numa sociedade fundamentada no trabalho servil, dependerá estreitamente da resposta que o trabalhador-escravo dá a seus senhores no plano da fidelidade, da obediência, da humildade. Essas três qualidades essenciais conformam a personalidade do 'bom escravo', pois assim o negro, que estava marginalizado e a quem o senhor deu um devoir faire, adquiriu uma competência, um savoir-faire, fonte de poder. Essa força proveniente do savoir-faire arrefece o temor, trata certas feridas abertas pelo desenraizamento da terra dos ancestrais, devolve ao homem escravo uma certa linguagem, uma nova morada, uma identidade particular numa espécie de contrato tácito e sólido." (Kátia Mattoso, 1982, Ser escravo no Brasil)

É imprescindível, para o Direito Moderno, que a noção de contrato esteja sobredeterminada pela noção de liberdade da vontade. Isso significa que esse contrato descrito pelos historiadores do escravismo, esse contrato que se realiza por diferentes facetas da prostituição,  não é entendido como Norma pelo Direito do Trabalho, nem mesmo como norma cultural de um direito vivido. A doutrina desse campo do Direito mal tangencia, em descrições de bordas dos fenômenos, de margens atípicas, o acontecimento das tradições perversas, híbridas e polimórficas nas relações de trabalho no Brasil e no mundo.

Vivemos em um país no qual a Norma diz terem todos, os seres humanos abrigados por ela, liberdade e dignidade para livre contratarem e que esses mesmos seres humanos são conhecedores de todos os seus direitos sendo capazes para livremente falar e negociar contratos. Essa Norma geral é aplicada e divulgada ao lado de normas específicas usadas para combater e conter os ilícitos que anunciam elevados graus de violação de direitos humanos fundamentais. Entre a Norma geral e as específicas leis de proteção dos mais desvalidos ( violentados, humilhados publicamente, torturados e mutilados) resta um amplo e majoritário espaço de silêncios e escuridões nos quais transita aquele direito vivido baseado no tripé descrito por Kátia Mattoso.

No caso daquilo que chamam de "assédio moral", na maioria esmagadora dos casos ele somente ganha visibilidade depois de ser vivenciado até a efetivação de danos morais e materiais crônicos e agudos, muitos anos depois de ter iniciado.

A prescrição da legislação atual tem a índole da  Lei da Abolição da escravatura, no Brasil. Anistiar os opressores e violadores de direitos e abandonar os violados à ausência de memória.

Uma mulher de origem das camadas mais pobres da população se torna gerente de uma loja de roupas de grande porte e filiais em todo o país. Vive a sua vida até não acreditar mais em homens, mas vê televisão todos os dias e deseja o mocinho da novela, deseja ser respeitada, sonha com o dia em que real e substancialmente falem com ela com amor, liberdade e intimidade. A gerente se torna uma algoz porque não tem ninguém da família para defendê-la, de uma família qualquer, nem a sua, nem as famílias políticas possíveis, seja em um sindicato, seja dentro da própria estrutura de poder que a elevou a um posto de comando. Será julgada como réu em um processo por dano moral e material, praticado contra um subalterno seu. Ela vai  dar-se conta que foi vítima de uma era chamada de "neo-liberal", que de liberal não tem nada, ao contrário, é um tempo de controle total, público e privado, de todas as manifestações humanas, inclusive as mais íntimas e pessoais, quando tiver 75 anos, viver em outro tempo e puder olhar de longe o seu drama dos 30 anos. Seus direitos de reclamar terão prescrito.

A prescrição, na norma jurídica brasileira, principalmente no campo do direito do trabalho, é uma consagrada atitude de apagamento da memória coletiva. Sobram as mágoas, os rancores, os transtornos, as perdas, a solidão devastadora de qualquer Outro possível. Sobra um outrencídio legal, nos dois sentidos dessa palavra, no jurídico e no simples e cotidianamente perverso.

Há ainda um significado mais amplo, de tempo longo, para os efeitos dessa Norma da Prescrição. Já que é uma memória curta e imposta em um campo da existência social - o trabalho - que organiza toda a vida humana, e já que é o mundo do trabalho que dispõe a História do Brasil entre um "antes" e um "depois" do escravismo, a prescrição acaba impondo uma lógica de tempo cíclico que se acopla às lógicas modernas do tempo sucessivo das grandes narrativas de impérios, repúblicas, revoluções, Eras disso, Eras daquilo. Os intelectuais sempre tentaram descrever esse acoplamento como uma permanência de um caráter digamos macunaímico, ao lado de uma evolução tortuosa pelos caminhos da modernidade, o que preservava ou um estar sólido, ainda que aristocrático, ou uma evolução difícil mas segura, como qualquer signo moderno. O que não havia sido dito, até hoje, e parece que o "hoje" começa a dizê-lo, é que esse acoplamento de duas lógicas tende ao hibridismo, se assim o processo geral da humanidade o permitir. Isto é, se o mundo entra em desgoverno, qual é a específica forma desse desgoverno em um território composto por uma nação baseada na curta memória?

Começa a se delinear uma cacofonia preenchida por algo da natureza de uma "ausência de sucessão", o que nos remete a um caminho em direção ou à loucura coletiva no sentido tirânico, ou à vida baseada num absolutamente simplificado conjunto de signos. Ou os dois, sucessivamente, em séries de curta duração e sem memória.
                                                                 (versão dois - véspera das eleições de 2014)

                                                                                                 

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