Pedofilia - Escravismo e Prostituição no Brasil da Era Lula - Parte III


Pedofilia. Ouça a palavra, sinta a palavra, deixe a repetição soar como um mantra em seus ouvidos, em sua pele, suas intimidades. Envolva-se com ela, a palavra, sem ninguém por perto, em absoluta privacidade. Conviva com ela desde sua primeira memória gravada, desde sua pequenez infantil. Sobretudo faça um pacto com ela, a palavra, de que você será criança a vida inteira, infantil para ela, para seu deleite, para seu demasiado poder incondicional e impune.

A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos. Sem deixarem de ser relações - as dos brancos com as mulheres de cor - de "superiores" com "inferiores" e, no maior número de casos, de senhores desabusados e sádicos com escravas passivas, adoçaram-se, entretanto, com a necessidade experimentada por muitos colonos de constituírem família dentro dessas circunstâncias e sobre essa base. (C&S, Gilberto Freyre)

Pedofilia. Olhe a escrita da palavra, pe-do-fi-li-a, não parece algo singelo? Abstraia o significado que os outros disseram pra você, tente ler apenas as sílabas, sem preconceitos, sem conceitos, sem entendimentos, pe, qual o problema de um “pe”? Pe-pepe-pepe-pepe, cante. Do-dodo-dodo-dodo, brinque com as sílabas. Fiiii- firiri- fifi... Li-lili-liriri-lili...aaaa- aa-aa-aa, aaaa-aa-aa-aa... Divirta-se sem medo, é só uma brincadeira, brincadeirinhaaaaa... É só um olhar profundo, sem fim. Um semi-sorriso enigmático, difícil de entender. Não, não de monalisas, um outro sorriso, canibal, devorador, refletindo aquele sempre mesmo olhar vazio, nojento, parado, quente, fervendo e gelado ao mesmo tempo.

O furor femeeiro do português se terá exercido sobre vítimas nem sempre confraternizantes no gozo; ainda que se saiba de casos de pura confraternização do sadismo do conquistador branco com o masoquismo da mulher indígena ou da negra. Isto quanto ao sadismo de homem para mulher - não raro precedido pelo de senhor para muleque. Através da submissão do muleque, seu companheiro de brinquedos e expressivamente chamado leva-pancadas, iniciou-se muitas vezes o menino branco no amor físico. Quase que do muleque leva-pancadas se pode dizer que desempenhou entre as grandes famílias escravocratas do Brasil as mesmas funções de paciente do senhor moço que na organização patrícia do Império Romano o escravo púbere escolhido para companheiro do menino aristocrata: espécie de vítima, ao mesmo tempo que camarada de brinquedos, em que se exerciam os "premiers élans génésiques" do filho da família.(GF, C&S)

O que fez você estranhar o sorriso enigmático desde a primeira vez que o sorriso enigma lhe sorriu? Se nunca ninguém disse: quando alguém mostrar um sorriso enigma fuja, tenha medo. Porque você teve medo no primeiro instante? De onde saiu esse seu medo? Olhe em volta, depois, quando outros estiverem junto, quando você estiver com outros, outros pequenos e outros grandes, em lugares sem sorriso enigmático, sem olhar sem fundo, e pergunte por que o olhar sem fundo e o sorriso enigma não estarão nunca ali? Que lugar é esse onde o olhar sem fundo aparece? É um lugar no qual o seu destino aparece, o que você realmente deve ser se inaugura e assim será sempre. Para você será eternamente assim.

Nesse período é que sobre o filho de família escravocrata no Brasil agiam influências sociais - a sua condição de senhor cercado de escravos e animais dóceis - induzindo-o à bestialidade e ao sadismo. Este, mesmo dessexualizado depois, não raro guardava em várias manifestações da vida ou da atividade social do indivíduo aquele "sexual udertone", que segundo Pfister, "is never lacking to wellmarked sadistic pleasure". Transformava-se o sadismo do menino e do adolescente no gosto de mandar dar surra, de mandar arrancar dente de negro ladrão de cana, de mandar brigar na sua presença capoeiras, galos e canários - tantas vezes manifestado pelo senhor de engenho quando homem feito; no gosto de mando violento ou perverso que explodia nele ou no filho bacharel quando no exercício de posição elevada, política ou de administração pública; ou no simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho. Gosto que tanto se encontra, refinado num senso grave de autoridade e de dever, num Dom Vital, como abrutalhado em rude autoritarismo num Floriano Peixoto.(GF, C&S)

Por que ninguém fala nada sobre isso e por que eu não posso falar? Vai ver é porque o olhar sem fundo e o sorriso enigma são feitos só para mim, brotam de mim, são meu merecimento. O mundo existe para mim desse jeito, há um precipício, um poço sem fundo, um abismo de um olhar sem fundo e seu sorriso enigma me mostrando ser esse o meu destino, o meu "dever de casa" como os grandes adoram falar, o meu motivo, jogar-me em direção ao olhar sem fundo e ao sorriso enigma e me estilhaçar em deleites vazios. Nunca sei como dizer isso, nunca saberei, só o meu silêncio e uma dor pluma acariciando minha pele inteira, dos pés à cabeça, intimidades uivando gemidos mudos.

Ricardo Benzaquen de Araújo afirma que "o inferno parecia conviver muito bem com o paraíso em nossa experiência colonial", o escravo da antiguidade clássica seria o estrangeiro (não grego, mas bárbaro) acostumado ao poder despótico; o escravo da tradição cristã seria um pecador que, pela punição, se torna uma criança incorporada à casa do senhor. Gilberto Freyre movimentaria o seu texto entre as duas tradições: estão presentes na casa-grande e na senzala tanto o "gosto de mando violento ou perverso" quanto a "luz ambígua da intimidade e da violência, da disponibilidade e da confraternização". (Tempos e Tutelas - contribuição à História da Justiça e do Direito do Trabalho no Brasil, Dinah Lemos, publicado na página do Tribunal Regional do Trabalho - 4ª Região, link Memorial)

Mágico é voltar ao mundo dos outros depois de mergulhar no infinito do olhar sem fundo, eles notam sua reentrada magnífica, mas não sabem por que, e agora o segredo é um novo poder seu. Agora você tem um lugar imune, você o enigma, você sem fundo. Há um doce carisma em ser proibida, escancarada e invisível, devassada e incólume, obscura calma e tranqüilidade aflita. Camaleônica, você se espreguiça entre a lama e a rainha. Que estranho modo de preencher o olhar vazio até o seu fundo e que modo bizarro de abrigar um sorriso inútil.

As noções de normal e anormal parecem dissolver-se naquilo que Ricardo Benzaquen vai buscar em Gilberto Freyre: um mundo real sincrético, plástico, repleto de ambiguidades e quase polimórfico. Esse mundo todo posto em referência a uma norma superior, perversa e eficaz. Insuficiente, porque o mundo real finge que a obedece, o tempo inteiro. (Tempos e Tutelas, Dinah Lemos)


                                         (primeira versão - obras citadas: Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre, Guerra e Paz de Ricardo Benzaquen de Araújo e  Tempos e Tutelas de Dinah Lemos)







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