Querida Zeferina,
Isso é um
livro e eu não estou louca. Tranquilo. É uma série de cartas para minha tetravó,
ou tataravó, sei lá como se diz. É de verdade, não é ficção. Falei “vou
escrever um livro de cartas para ela” olhando o velho. Ele era um psiquiatra e
psicanalista achado numa lista do convênio. Ano dois mil. Era conhecido em
Porto Alegre, fiquei sabendo depois. Velho, deve estar muito mais velho agora,
se vivo. Gostei dele, finalmente um “mais velho” carinhoso, claro, lúcido. Ele
ficou irritado, disse que não, eu deveria escrever sobre amor, falou enérgico,
paterno. Zeferina, o nome dela. Vou escrever cartas para uma antepassada que
viveu no final do século dezenove, mulher dona de vida desgraçada, difícil
demais para as moças certinhas de hoje, normal na época, normal para as muito
pobres de hoje. Ela era uma espécie de escrava. Talvez alforriada, escrava de
verdade, talvez uma índia humilhada demais, mas sem comprovante de compra, de
venda. Talvez filha de ventre livre, a lei de 1871 prevendo o nascimento de
bebês não mais escravos. O velho achou que era perigoso eu enlouquecer mesmo
escrevendo para uma morta. Bom, agora o mundo humano tão transtornado, tão
desavergonhado e eu, mais que sobreviver, consegui livrar-me das maldades no
caminho e chegar na minha casa linda, no marido bom de verdade, por que não
essas cartas agora? Escrevo para ela (pra ti) e me divirto. É uma história
simples, sem truques. Tem a ver com a ausência de interlocutores para os
saudáveis de memória, eles estão sós de dar dó. A maioria já enlouqueceu. Agora
são 2016 anos e não sei até quando esse referencial do profeta crucificado vai
durar. Talvez o dia da invenção de um ano um, inaugural, o mundo humano consiga
começar outra história, mas agora ainda é Cristo.
A mulher de
92 anos está ficando senil, mas não é Alzheimer. Isso de inventarem um nome
para o acontecido no sujeito quando todos estranham o dito ou o feito, daí
dizem “um distúrbio psíquico”, “uma degeneração do cérebro”, é só o trabalho de
inventar uma série de novos nomes à medida do aparecimento de variações. A
mulher tinha medo do tal Alzheimer desde os cinquenta anos, pois a mãe dela
morreu com 65, atropelada na chuva em um lugar estranho e de noite, mas eu não
quero falar disso agora.
Isso é um livro
porque eu preciso tentar fazer com que seu texto seja encontrado daqui há cem
anos, então só se for um livro porque nas redes sociais, na web, tudo pode
virar nada, desaparecer a qualquer momento. Só sendo um livro poderá ser
encontrado. Isso é uma carta íntima para minha tetravó, então eu não preciso
escrever tão certinho como manda o figurino. Claro, tem que dar para ler, mas
não precisa ser algo obediente e nem oficial. Seria ridículo o sujeito querer
deixar uma prova de que existiu e teve as suas próprias verdades e, ainda, ele
ter que obedecer as normas de todo o mundo. Então todos os loucos e transtornados
deveriam ter seus rastros varridos do mapa, e – vou te dizer, Zeferina, a
maioria está louca. Então...não vou procurar uma escola para aprender a
escrever depois de velho. Era só o que me faltava! Não é, Zeferina? O sujeito
psiquiatra e analista de imediato entendeu que eu era deprimida e que escrever
para uma mulher morta talvez desde a primeira década de mil e novecentos era
praticamente afundar num espaço perigoso, louco. Logo pensei, não sou louca.
Tinha certeza. Mas deixei pra lá, que o velho não ia entender mesmo e eu estava
pagando pra ele me ajudar a sair da tristeza imensa, sem tamanho. Mas, olha,
sequestraram uns trinta hóspedes de um hotel, sei lá onde, no Brasil, hoje. Não
foi aqui em Imbituba. E os massacres nos presídios foram uns dias atrás,
segunda e terça. Tem uma guerra e ela está migrando para fora dos presídios. E
na Europa estão morrendo refugiados de frio, acampados em barracas molhadas,
sob temperaturas de dezenove graus negativos.
Dá pra fazer uma lista de merdas terríveis acontecendo. Bom, mas a
mulher de noventa e dois está ficando apática, depois meiga demais, depois
apática novamente. Mas louca não, apenas esquece o que disse ontem. E amanhã,
do que disse hoje. Fiz uma colcha de crochê para meu neto.
versão dois
Adorei!!! Quero ler mais. Que imensa coincidência dar com um texto de uma colega de primário. bjs Heloisa
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